Do jeito que está, o sol virou produto e sua venda é disfarçada
Por Paulo Pedrosa
Na geração distribuída de fazendas solares, vendedores entregam energia a preços até seis vezes maior que o de leilões do governo
O Brasil é o país da energia, mas precisa de luz do sol sobre suas escolhas. Uma história na linha do realismo fantástico pode ilustrar o nível de irracionalidade a que chegamos, destruindo valor em nossa economia e perdendo competitividade.
Imaginemos a criação de uma nova lei: cada brasileiro, ao viajar de avião, deve levar no colo uma gaiola com um caranguejo. Por mais absurdo que possa parecer, imediatamente a economia começa a se movimentar. Basta lembrar dos kits de primeiros socorros nos automóveis, no final dos anos de 1990. Com um pouco de imaginação, seguiria o caminhar do caranguejo.
Empreendedores começariam a montar fazendas de criação de caranguejos. Fábricas, do universo popular ao fashion, criariam gaiolas para todos os gostos, de bambu ou com cristais. Surgiria uma startup, potencial unicórnio, batizada de Craber, que entregaria caranguejos nas filas de embarque e os recolheria no desembarque.
As mais diversas petições seriam apresentadas no Judiciário para equiparar siris em aquários aos benefícios das leis. E o tema ganharia a política. Estados entrariam em uma guerra de incentivos para atrair o mercado, com as mais diversas teses.
Os goiamuns de uma determinada região, azuis e sem pelos nas patas, deveriam valer mais. E barreiras deveriam ser impostas à importação de caranguejos ou gaiolas para preservar os empregos no Brasil. Em breve, universidades estariam oferecendo disputados cursos voltados para o novo mercado, e mesmo na cultura haveria um ressurgimento do movimento mangue beat.
Milhares de justificativas seriam criadas para suportar o programa, baseadas nos empregos criados, na preservação dos manguezais, e renomados consultores seriam contratados para apresentar os mais diversos estudos com as maravilhas do universo dos crustáceos.
Se a razão prevalecesse e o desconforto, os custos e os problemas de saúde pública, enfim, levassem ao cancelamento do translado obrigatório de caranguejos, haveria uma enorme reação dos segmentos atingidos.
Brasília seria invadida por multidões usando as mais divertidas fantasias, e caranguejos seriam soltos nos salões azuis e verdes do Congresso. Milhares de memes seriam criados, slogans, repetidos em passeatas, carreatas e nas redes sociais.
De formas mais sutis essa história absurda se repete no setor de energia elétrica no Brasil. É isso o que explica o fato de sermos o país da energia barata e da conta cara. Subsídios, reservas de mercado, proteções, de forma aparente ou oculta, reforçam e replicam, com diferentes enredos, a criação de caranguejos, empobrecendo o país, enquanto enriquecem os mais espertos e ágeis que identificam a oportunidade, destruindo valor e empregos em uma escala muito maior do que os que criam, enquanto capturam seus resultados.
É esse o caso da venda (disfarçada) de geração distribuída de fazendas solares a consumidores em suas casas.
Enquanto os consumidores recebem pequenos descontos nas suas contas, os vendedores entregam sua energia por um preço até seis vezes maior do que o dos leilões do governo para e energia solar.
Tudo isso é possível porque os custos do sistema, das políticas públicas na energia e dos impostos são repassados aos demais consumidores nos mais variados mecanismos. A CDE (Conta de Desenvolvimento Energético), que aglutina diversas inconsistências como essa, já chega a R$ 20 bilhões por ano —e sobre elas os consumidores pagam mais R$ 8 bilhões em impostos.
O Brasil é o país da energia renovável. São imensas as nossas possibilidades. Em nossos sistemas isolados ainda gastamos R$ 9 bilhões ao ano com energia térmica, tão cara que, em alguns casos, valeria a pena simplesmente conectar geração solar às redes, produzindo energia de graça, para reduzir o consumo de combustíveis.
Com a redução dos custos de painéis e baterias, novas tecnologias, racionalização e modernização do setor em que o consumidor possa vender suas sobras, esse mercado de energia vai crescer imensamente, pelo caminho virtuoso. Corrigindo distorções e não criando novas, ou seja, por mérito, e não por mágica (Paulo Pedrosa é presidente da Associação Brasileira dos Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres; Folha de S,Paulo, 8/12/19)