02/12/2019

Últimos vestígios da velha internet – Por Ronaldo Lemos

 Últimos vestígios da velha internet – Por Ronaldo Lemos

Legenda: Os primeiros computadores com capacidade de processamento surgiram no final da década de 40 (na foto); no início dos anos 50, os modelos mais avançados tinham capacidade de 48 bits e ocupavam uma sala inteira 

O sistema '.org' está prestes a se tornar mais um espaço comercial.

Os últimos vestígios da velha internet estão agonizando. Por "velha" internet pense no espírito que moveu a rede no início dos anos 1990: uma comunidade global de pessoas organizada em torno da troca de ideias e experiências. Radicalmente descentralizada e cuja espinha dorsal eram comunidades acadêmicas, e não interesses comerciais.

Pois bem, um dos últimos focos de resistência desse espírito está agora em risco. Trata-se do endereço da rede ".org", criado para ser utilizado por diversas organizações e institutos sem fins lucrativos ao redor do mundo. 

Os registros desse tipo de endereço são gerenciados por uma entidade sem fins lucrativos chamada Isoc (Internet Society). Essa entidade é responsável por gerir os registros ".org" assegurando que eles atendam ao interesse público e promovendo iniciativas de apoio a atividades não comerciais na rede. Muita gente até prefere registrar endereços em ".org" justamente porque ao fazer isso sabem que estão contribuindo para uma organização que protege atividades de interesse público. É isso agora que está em risco.

Desde 2010 tem acontecido uma crescente mercantilização dos endereços da internet. A responsabilidade por essa mudança é da Icann, entidade global que faz a gestão do sistema de nomenclatura dos sites da rede. Esse processo levou a uma rápida concentração das entidades de registro, que se tornaram cada vez mais ativos especulativos. Hoje, boa parte dos sistemas de endereçamento está concentrada nas mãos de algumas poucas empresas.

 

A última fronteira de resistência a esse movimento tem sido justamente os endereços ".org". Só que nos últimos dias foi anunciada a venda de todo o sistema ".org" para um fundo de investimento. Dentre as repercussões desse movimento está o aumento dos preços desse tipo de endereço, que vinham sendo mantidos baixos justamente pelo fato de serem geridos por uma entidade sem fins lucrativos.

Com isso, um dos últimos espaços não comerciais da estrutura da rede está prestes a se tornar mais um espaço comercial, sem nenhuma diferença institucional. 

Esse movimento enfureceu Tim-Berners Lee, o criador de todo o sistema WWW e atualmente presidente da Fundação Web. Na sexta (29), ele declarou: "Estou muito preocupado com a venda do .org para uma empresa privada. Se os Registros de Interesse Público não precisarem mais agir no interesse do público, isso será uma enganação. Precisamos de uma explicação urgente".

O chamado dele foi logo acompanhado por outras entidades que protegem direitos na rede, como a EFF, a Epic e a Access Now (da qual, vale mencionar, já fiz parte do conselho). O consenso entre todas essas organizações é que a venda do ".org" eliminará um dos últimos espaços institucionais da internet que promovem infraestrutura para atividades não comerciais, protegida da mercantilização (e da vigilância pública ou privada) que tomou conta da rede.

Se o ".org" irá resistir a essas pressões, os próximos dias irão dizer. A questão é que a rede de hoje se distanciou definitivamente das suas origens e valores iniciais. Há quem proponha que uma outra internet precisa ser criada para retomar esse espírito. Essa proposta não é utópica, vamos ouvir falar muito dela nos próximos tempos.

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Já era Uma internet sem fakenews

Já é Deepfakes

Já vem Cheapfakes (as deepfakes chegando às mãos de qualquer pessoa) (Ronaldo Lemos é advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro; Folha de S.Paulo, 2/12/19)