A “blitzkrieg” sobre o agro: o que esperar – Por Heloisa Lee Burnquist
Em 2020, a população global enfrenta uma “blitzkrieg” causada por um inimigo invisível, o coronavírus SARS-CoV-2, que causa a covid-19. As máscaras obrigatórias, a obsessão por álcool em gel e o temor na aproximação de outras pessoas marcarão uma geração. O que parecia quase impossível – brasileiros passarem pelo menos quatro meses sem futebol no domingo à tarde – já ocorreu. E não temos perspectivas de quando voltaremos à “normalidade” em termos de ir e vir, pois medidas não assumidas para preservar vidas e saúde vêm prejudicando o controle da doença. Com certeza muita coisa vai mudar. Por vivermos uma situação sem precedentes, será necessário intensificar análises e pesquisas para identificar os ajustes a serem feitos na formulação de políticas públicas, tanto para a saúde, como para os efeitos socioeconômicos decorrentes.
Uma fonte de apreensão quanto às possíveis mudanças introduzidas pela pandemia é a possibilidade de retração do comércio entre os países com o emprego de medidas protecionistas. Essa reação foi observada em crises globais anteriores, e a situação atual pode ser agravada pelo contexto já prevalecente. Nos últimos anos, tem-se observado o enfraquecimento da capacidade da OMC (Organização Mundial do Comércio) em coibir o emprego do protecionismo, as guerras comerciais entre os Estados Unidos e a China, retrocessos na globalização e fortalecimento da regionalização do comércio.
A despeito das expectativas negativas neste front, acredita-se que o Agro brasileiro pode sobreviver à crise, e até sair fortalecido. Segundo pesquisas do Cepea, de janeiro a abril deste ano, o volume de produtos do agronegócio exportado pelo Brasil cresceu 6% frente ao mesmo período de 2019, com o faturamento somando US$ 31 bilhões. Ainda de acordo com o Cepea, a participação do agronegócio nas exportações totais do País foi de 47% no primeiro quadrimestre.
Embora positivos, tais resultados podem não ser suficientes para manter os diferentes segmentos do agronegócio equilibrados, em função de suas peculiaridades. O setor sucroalcooleiro, por exemplo, foi um que teve as perspectivas para a safra 2020/2021 totalmente frustradas.
A expectativa era de que, após uma década de superação de problemas iniciados no governo Dilma, a safra evoluiria alavancada por uma conjunção de aspectos positivos. O consumo de etanol vinha em patamar elevado, com o barril de petróleo tipo brent mantendo um nível suficientemente alto para dificultar a competitividade da gasolina frente ao biocombustível. Em fevereiro, os preços do açúcar na Bolsa de Nova York (ICE Futures) chegaram a 15 centavos de dólar por libra-peso (contrato Abril/2020), contra 12 e 13 centavos de dólar por libra-peso em fevereiro do ano anterior. Além disso, as condições climáticas favoreceram o aumento da produtividade da cana, confirmando que esse seria o ano da virada. Com o dólar a R$ 4,3, boa parte do açúcar brasileiro a ser produzido foi vendida, segundo uma estratégia que se mostraria extremamente oportuna, tendo em vista que, em poucas semanas, ocorreu a reversão nos direcionadores positivos para o setor, em função do início da pandemia na Ásia.
Tem-se considerado que, pelo menos no curto prazo, a balança deve pender negativamente para o etanol relativamente ao açúcar. A manutenção de pessoas em suas casas e a queda brusca no preço internacional do petróleo – provocadas por desentendimentos entre grandes produtores, como Rússia e Arábia Saudita – reduziram o consumo do biocombustível de forma drástica. Ao longo da última década, a venda de etanol tornou-se a principal fonte de fluxo de caixa para as usinas. Face ao contexto atual, a gestão das empresas precisa ser adequada à nova realidade.
Em 2019, cerca de 60% da cana colhida na região Centro-Sul foi direcionada à produção de etanol, diante dos baixos preços internacionais do açúcar. Para a presente safra, a melhor alternativa de curto prazo parece ser o armazenamento do produto para evitar “preços de liquidação”, visando manter a participação no mercado. Líderes do setor vêm trabalhando junto ao governo para que uma política adequada seja implementada, minimizando os danos que baixos preços podem ter para o setor. Tem-se observado, também, que cerca de 30% das unidades moendo cana no País produzem apenas etanol, o que precisa ser contabilizado nas análises quanto à perspectiva para o produto e o seu preço de mercado.
No caso do açúcar, sabe-se que, quanto maior a influência externa sobre os mecanismos de mercados, tanto mais suscetíveis estes ficam a amplas variações na demanda, resultando em variações expressivas dos preços. Na realidade, os principais direcionadores dos preços de açúcar brasileiro atualmente são seis: (i) estoque global da commodity, (ii) taxa de câmbio, (iii) preços do petróleo, (iv) condições climáticas, (v) regulamentações governamentais e (vi) tendências do consumo.
No que tange aos estoques, quanto mais elevados, maior a pressão negativa sobre os preços. Desde a safra 2016/17 os estoques foram se acumulando no contexto global, atingindo volume recorde, superior a 65 milhões de toneladas – tendência essa que seria revertida na safra atual, com análises indicando um déficit da ordem de 10 milhões de toneladas no mercado internacional. Isso vinha sendo visto com grande entusiasmo pelo setor, considerando-se que, dentre os direcionadores dos preços do açúcar, o patamar de estoque global é fundamental. Na verdade, este é um fator que afeta todas as commodities. Para o açúcar, níveis baixos de estoque indicam fortalecimento da demanda, baixa produção ou ambos. Para o açúcar de cana, particularmente, o efeito pode ser acentuado, devido ao período de produção envolver um ciclo relativamente longo, nos grandes países produtores.
Logo no início de março, no entanto, as variáveis voltaram a desestimular as exportações de açúcar brasileiro, com exceção do câmbio, que chegou ao recorde nominal de R$ 5,9 em meados de maio. As cotações externas do açúcar retornaram ao patamar de 10 centavos de dólar por libra-peso, com a configuração de um novo período de risco nos mercados financeiros.
Os efeitos do terceiro direcionador, o preço do petróleo, já mencionados acima, resultaram em um fenômeno desafiador para grandes nomes da economia. Mudanças no mix tornaram-se favoráveis ao açúcar, seguindo o entusiasmo que um incremento de preços sinalizava. O clima, por sua vez, favoreceu a produtividade nacional, enquanto quebras na Tailândia – importante produtor de açúcar –, em função da falta de chuva, eram tidas como adicionais positivos ao desempenho do sucroenergético brasileiro nesta safra.
A essa altura, inferências quanto às regulamentações governamentais e particularmente ao consumo que também são importantes direcionadores parecem não ter uma base bem definida para interpretação. Com a evolução da covid-19 no mundo, os mercados das commodities agrícolas passaram por uma elevada instabilidade, expondo os produtores a uma única certeza: uma boa porção da demanda esperada para os produtos do Agro pode ser reduzida e as estabilidades de cadeias de oferta tornaram-se tênues. É preciso arregaçar as mangas e aprender a lidar com os prejuízos que ainda podem ser administrados com empenho e responsabilidade (Heloisa Lee Burnquist é professora da Esalq/USP e pesquisadora do Cepea; Assessoria de Comunicação, 29/6/20)