A crise do PT interessa ao Brasil – Editorial O Estado de S.Paulo

A disputa envolvendo a presidência do PT importa não só aos petistas e à esquerda: a transição do partido de Lula indicará o rumo do governo e, por consequência, do País.
O Brasil não passará incólume à profunda crise que abate o PT. A fissura da legenda, levada ao paroxismo no conflito aberto entre os morubixabas que integram a sua principal corrente, envolve a sucessão de Gleisi Hoffmann na presidência do partido, posto que ela ocupava desde 2017. Não está em jogo, porém, apenas a escolha de um nome para presidir o partido – se fosse só isso, não teria a menor importância. Quem suceder a Gleisi, contudo, também dirá muito sobre a bússola que orientará o futuro imediato do partido do presidente Lula da Silva. É nessa condição que é preciso reconhecer: o que acontece hoje no PT interessa muito ao restante do País, porque os rumos do partido decerto afetarão os rumos do governo Lula.
Nesses oito anos, coube a Gleisi não só liderar o partido durante o calvário enfrentado por petistas ante a Lava Jato, o impeachment de Dilma Rousseff e a prisão do presidente Lula da Silva. Ela também esteve no epicentro de alguns dos principais conflitos envolvendo o PT, contribuindo enormemente não para a pacificação e a reconstrução de um país fraturado, e sim para a continuidade da polarização. Ela foi uma defensora incansável de posições radicalmente opostas ao que se esperava para um governo de frente ampla. Com seus ataques à política econômica, muitos dos quais em golpes abaixo da cintura do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, Gleisi fez do PT um caso único no mundo: o partido do presidente e líder da coalizão governista é aquele que primeiro e mais enfaticamente se opõe a iniciativas do próprio governo – uma oposição a si mesmo.
Agora ministra, Gleisi se opõe duramente a outro petista, até aqui tido como favorito para lhe suceder: Edinho Silva, ex-ministro e ex-prefeito de Araraquara. Conhecido como um político moderado e conciliador, além de próximo a Haddad e ao presidente do Banco Central, Gabriel Galípolo, ele tem protagonizado o que poderia ser impensável até pouco tempo atrás: um petista que admite problemas e fragilidades do seu partido e abertamente defende mudança de rumos na legenda.
Como se sabe, petistas costumam viver numa espécie de metaverso, uma realidade própria na qual convivem a convicção das próprias virtudes, a transferência para terceiros de culpas e fracassos que deveriam ser creditados a si mesmos e a mitificação exacerbada dos poderes supostamente sobrenaturais de seu maior líder. Edinho Silva ainda padece do pecado da santificação de Lula, mas ao menos vem apontando o óbvio: o País (e, claro, o seu partido) precisa sair da armadilha da polarização e da radicalização. Não é exagero, portanto, enxergá-lo como a grande chance de um imprescindível aggiornamento do PT e, por consequência, da esquerda tradicional brasileira.
Mas o ex-prefeito vem sendo sabotado – e sob as barbas de Lula, que até aqui demonstrou apoio a Edinho Silva. Conflitos internos são comuns a partidos, e especialmente ao PT, onde há 45 anos convivem infinitas correntes que se digladiam na disputa pelo poder. Mas desta vez o conflito ganhou contornos de guerrilha. A combustão petista atingiu o auge no vazamento de uma reunião na casa de Gleisi, na qual Lula foi chamado a ouvir sobre a resistência de dirigentes ao nome de Edinho Silva. O grupo de Gleisi apresentou nomes alternativos: o deputado José Guimarães (CE), o ex-ministro José Dirceu (SP), o senador Humberto Costa (PE) e Paulo Okamotto, diretor do Instituto Lula.
Não é preciso pensar muito para reconhecer que tais nomes estão aquém dos desafios do partido, além de simbolizarem tudo o que a maioria dos brasileiros não deseja hoje: um PT (e o governo Lula, por consequência) mais radical e mais à esquerda. Mas o problema, ao que consta, não se resume à divergência de ideias e destino do partido. A tesouraria petista, hoje nas mãos de uma aliada de Gleisi, é um dos pomos da discórdia. Nem Gleisi nem Edinho abrem mão do controle do cargo, responsável pela gestão dos milionários recursos do fundo eleitoral – no ano passado, o PT recebeu quase R$ 620 milhões.
Nessa disputa por poder e dinheiro, não se sabe se o PT finalmente se atualizará e fará o governo Lula mudar de rumo, ou se permanecerá atrelado ao populismo arcaico do demiurgo petista, que se julga intérprete de um povo que não existe mais (Estadão, 12/3/25)