A história de 'L.', o menino que atirou o rojão contra a própria testa
Foto Ricardo Stuckert - PR
Por Vinicius Torres Freire
Difícil entender a política que produz erro tão primitivo e um incêndio financeiro gratuito
Na infância selvagem de tantas pessoas da minha geração, brincávamos com fogo. Incendiávamos matos de terrenos baldios, soltávamos balões, fazíamos fogueiras de metro e meio de altura com paus furtados de construções. Soltávamos pipas com linhas cortantes. Nos acertávamos com bagas de mamona atiradas por estilingues. Explodíamos potes de vidro com bombas juninas incrementadas.
Era uma delinquência infantil em geral inocente, animada pela coragem dos incautos, em uma cultura de criação sem psicologia, "acolhimento" ou "espaços seguros".
E daí? É licença sentimental, algo sarcástica, para citar uma história de "L.", um amigo de rua, que veio à cabeça quando "L.", o Lula, lançou seu pacote fiscal.
"L.", o amigo nada genial, acendeu um rojão de fogos de artifício. Por ignorância ou inadvertência, virou a boca do rojão para si, em vez de mirar o céu. Poderia ter ficado cego, mas foi apenas chamuscado. Os fogos de luz colorida que deveriam iluminar a noite explodiram pelo chão.
Fernando Haddad, Gabriel Galípolo e Simone Tebet avisaram o presidente do risco de o pacote não apenas dar chabu mas de explodir na cara do governo, inclusive com menções de dólar a R$ 6. O plano fiscal magro e com o artifício da isenção de Imposto de Renda pôs fogo no mato seco por uma estiagem de boas notícias financeiras que vinha desde março.
O público mal notou a pirotecnia. A popularidade de Lula anda em nível medíocre, apesar da melhoria de salário, emprego e benefícios sociais, bem-estar material médio que não se via faz mais de década.
O tiro na testa acelerou a degradação financeira. As taxas de juros foram a níveis inéditos desde o colapso de 2015-16. O perigo de inflação permanece incontido. O arrocho e o risco extra ameaçam o crescimento daqui até a eleição de 2026. Se era pragmatismo oportunista, deu besteira.
Aumentar a despesa e correr atrás da receita depois já fora um plano ruim, com chance diminuta de dar certo. Não deu. Para piorar, em junho explodiu revolta de ricos e empresas contra impostos extras.
Em fins de 2022, o pacote Lula 3 poderia ter sido outro: lenitivo imediato para pobres, fim de aumento crônico de despesa (Previdência), impostos sobre ricos a fim de pagar essa conta e parte do superávit. Seria um plano de esquerda racional. Não foi.
Poderíamos estar agora discutindo transição energética, política de desenvolvimento, SUS, universidade. Ou como lidar com o conchavo do Congresso com a elite econômica predatória, que avacalha a reforma tributária com benefícios para si, que enfia "jabutis" em qualquer lei a fim de arrancar subsídios, que freia tentativas de cortar benefícios tributários injustos e ineficientes (muitos concedidos por Lula 1-2 e Dilma 1). Um Congresso que feudaliza o Orçamento, hienas mordendo a carne das emendas, problema quase insolúvel de privatização do uso do dinheiro dos impostos.
Mas não. O Brasil corre o risco de se tornar laboratório de teste da ideia de que juros altos aceleram a alta de uma dívida que já cresce sem limite, o que pressiona o dólar, o que causa mais inflação, que eleva juros etc. Isso em tempo de PIB bom, quando um acerto de contas seria menos amargo.
Na teoria, ainda dá para consertar. Na prática, fica a dúvida: que situação (política?) é essa em que "L." estava livre para se fazer estrago tão rudimentar? (Folha, 15/12/24)