02/03/2021

A necessária resiliência e os aprendizados em travessias tormentosas

A necessária resiliência e os aprendizados em travessias tormentosas

Por Paulo Hartung

Nas palavras de Albert Camus, ‘a única maneira de lidar com a peste é com decência’.

Todo tempo crítico tem ao menos duas “forças” essenciais: aprendizado e finitude. Não há tormenta que dure para sempre e ela será tanto menos danosa, e o mais breve possível, quanto maior for a nossa resiliência, definida como capacidade de suportar, lidar e reagir positivamente a contextos adversos. No caso de uma dramática crise sanitária, com milhares de mortos por dia e sem horizonte claro de fim, essa é uma tarefa ainda mais desafiante.

Em meio à dor e às perdas impostas pela pandemia, no entanto, o Brasil vem registrando movimentos, especialmente no âmbito da sociedade civil, no sentido de produzir saberes e elaborar aprendizados relativamente à tragédia virótica, até para que possamos sair o mais rapidamente dela e um tanto mais habilitados a, efetivamente, nos recompormos social e economicamente no pós-crise.

Nesse aspecto ontem foi lançado um livro muito especial, reunindo reflexões acerca da experiência de tempos tão críticos no tocante a diversas áreas das políticas públicas. Trata-se da materialização de um esforço que merece ser celebrado como uma contribuição ímpar do olhar racional para extrair aprendizados de um ano dessa crise aqui, no Brasil, e em favor de uma nova história a partir dela, até mesmo com o objetivo para nos preparar para outros enfrentamentos de natureza similar no futuro.

Legado de uma Pandemia: 26 Vozes Discutem o Aprendizado para a Política Pública, organizado por Laura Müller Machado, tem quatro partes, tratando de campos específicos: ordem social, ordem econômica, organização do Estado, política e comunicação. O projeto foi viabilizado pelo Insper e pela Fundação Brava.

Na série de quatro eventos online que marcam o lançamento e a oferta gratuita do e-book, amanhã, participamos como comentarista dos cinco capítulos da parte 3, Legado para a organização do Estado, cujos textos serão apresentados por seus autores na ocasião.

Em O legado para a governança colaborativa, Sandro Cabral discute a necessidade impositiva de governos colaborativos, tanto entre si quanto com as organizações da sociedade civil. Pontua que a colaboração exige persistência e decisão política, preconiza pouca vaidade e requer o exercício genuíno da liderança em meio a enfrentamentos agendados por múltiplos fatores e atores.

Em Covid-19, federalismo e a descentralização no STF: reorientação ou ajuste pontual?, Diego Werneck Arguelhes e Natália Pires de Vasconcelos discutem a posição, que consideram pontual, do Supremo Tribunal Federal (STF) de incrementar a competência concorrente de Estados e municípios diante da majoritária jurisprudência de opção pela postura centralizadora e unificadora da Corte.

Marcelo Marchesini da Costa e Gabriela Lotta, em A gestão pública vigilante, expressam que a pandemia trouxe à tona o que chamam de burocracia que se posiciona acerca de decisões das lideranças, seja para enfrentar o que se considera equívoco administrativo-científico, seja para se insurgir contra determinações de possível cunho ideológico. Apesar de apontar os riscos desses comportamentos, que não seriam precípuos da burocracia, o texto sugere que gestões vigilantes podem ser um contrapeso a desmandos.

Em As lições aprendidas com a resposta do sistema de saúde, Francisco Inácio Bastos e Elize Massard da Fonseca pontuam limitações e também ações de alta relevância, em meio a problemas estruturais e fatores políticos perturbadores. Consideram que um dos aspectos mais relevantes da resposta do Brasil à covid-19 foi a capacidade de desenvolver ações de ciência, tecnologia e inovação, permitindo soluções céleres.

Ricardo Paes de Barros e Laura Müller Machado, em A pandemia e o início do fim da invisibilidade, registram que a incapacidade de saber quem são os brasileiros mais empobrecidos e de levar o Estado até eles acabou revelando a invisibilidade de segmentos inteiros da sociedade. Dizem que, para um país que destina 25% do produto interno bruto (PIB) a assegurar direitos sociais, nada justifica a existência de populações sob a escuridão da identidade e o apagão da comunicação com os governos – a não ser uma tendência de manter contingentes à margem das conquistas civilizatórias.

A partir da leitura do livro se incrementa a certeza de que é urgente um esforço amplo de modernização do Brasil, movimento que vai do aprimoramento do pacto federativo, passa pela reforma das estruturas governativas e alcança a desconstrução dos sustentáculos perversos da desigualdade estrutural, que torna inviável qualquer projeto de nação justa, cidadã, inclusiva e sustentável em nosso país.

Esse livro, para além de sedimentar aprendizados valiosos em tempos tão duros, merece ser visto como uma inspiração para novas produções. Afinal, como diz uma das epígrafes da edição, nas palavras de Albert Camus, “a única maneira de lidar com a peste é com decência”, aqui materializada com o melhor da visão de origem científica, o convite à prática da resiliência e da empatia e a valorização imperiosa dos princípios democrático-republicanos a organizar a vida nacional (Paulo Hartung é economista, presidente executivo do IBÁ e foi governador do Espírito Santo; O Estado de S.Paulo, 2/3/21)