A soja, o Cerrado e o tempo – Por André Nassar
É hora de oferecermos uma gôndola com novos produtos, uma nova agenda de trabalho.
O Cerrado é adorado mundo afora: entre os que buscam segurança alimentar, por seu enorme potencial produtivo, e entre os que buscam conservação, por sua grande biodiversidade e seus recursos hídricos. A soja é um importante motor econômico e social do Cerrado.
Por outro lado, ela não é o motor atual do desmatamento do Cerrado. O tempo comprova que sua expansão converte cada vez menos vegetação nativa. Os dados recentes mostram que 93% da área aberta de Cerrado entre 2014 e 2015 não foi ocupada por sojicultura. É uma prova contundente de que a soja não é mais indutora significativa do desmatamento.
O Cerrado é o segundo maior bioma do Brasil, ocupa uma área de 204 milhões de hectares (24% do território nacional), dos quais 103 milhões (50,5% da área original) estão cobertos por vegetação nativa. A área protegida abrange 12,7% do bioma, sendo 4,5% de terras indígenas, 2,8% de unidades de conservação de proteção integral e 5,4% de uso sustentável. Há, ainda, 28,7% do Cerrado com vegetação nativa em condições de relevo e clima não apropriadas para atividades produtivas, adicionais aos 12,7%. Os dois usos produtivos de maior relevância são as pastagens plantadas, com 30% (60 milhões de hectares), e a soja, com 7,8% (17 milhões).
Dividimos o Cerrado brasileiro em duas grandes regiões produtivas: o Cerrado consolidado, que está nos Estados do Centro-Oeste (Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Goiás), de São Paulo e Minas Gerais; e o Cerrado da fronteira agrícola, batizado de Matopiba (áreas de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia). Duas razões justificam essa divisão. Embora a base produtiva no Matopiba seja menor (4 milhões de hectares) que no Cerrado consolidado (13,1 milhões), a soja no Matopiba cresce mais rapidamente (14,3% ante 6,5% ao ano no período de 2007 a 2014, boom da soja). A segunda razão é que, com os crescentes investimentos nos corredores de exportação do norte, acreditava-se que ambas as regiões seriam capazes de manter essas elevadas taxas de expansão. Os dados das últimas três safras, no entanto, mostram que a expansão desacelerou para um terço do período do boom (5,9% e 2,5% ao ano).
De 2001 a 2007, no Matopiba, 61% da expansão da área de soja se deu com desmatamento. De 2007 a 2014, a participação continuou elevada: 52%. Mas de 2014 a 2017 essa participação caiu drasticamente, para 14%. Olhando a região do Cerrado consolidado, observamos que essa desconexão já ocorreu há tempos, pois entre 2007 e 2017 apenas 4% da expansão de área plantada foi realizada sobre Cerrado. Até mesmo no Matopiba, onde a expansão da soja se deu com conversão de Cerrado, a desconexão é evidente nos anos recentes.
Explicando de outra forma, no Matopiba cada hectare adicional de soja entre 2001 e 2007 levava ao desmatamento de 0,61 hectare de Cerrado, ao passo que hoje esse mesmo hectare adicional leva a uma abertura de 0,14 hectare. No Cerrado consolidado faz dez anos que um hectare de expansão de soja converte 0,04 hectare. No futuro, o Matopiba tende a ter um padrão de expansão semelhante ao do Cerrado consolidado: expansão da soja com abertura marginal de área.
A Moratória da Soja desmontou a narrativa de que a sojicultura é indutora do desmatamento na Amazônia. O argumento que se seguiu foi que a moratória provocou vazamento da expansão sobre o Cerrado. Tal vazamento nunca ocorreu no Cerrado consolidado. E se ocorreu no Matopiba, o ralo está se fechando rapidamente a cada ano que passa. Afinal, que indutora é essa cuja responsabilidade direta pelo desmatamento é de 7% da área desmatada?
O Cerrado tem mais de 20 milhões de hectares de pastagens com aptidão de clima e solo para lavouras anuais. A soja tem crescido 500 mil hectares por ano na região. São essas áreas de pastagens que têm dado lugar à expansão da soja. É preciso direcionar os esforços para os fatores que são, de fato, determinantes para redução do desmatamento do Cerrado, como o aumento da produtividade das áreas já abertas.
A indústria processadora de soja tem debatido com ONGs, governos, sojicultores, varejistas, Ministério Público e outros atores a criação de alternativas para o desenvolvimento de modelos de produção que não demandem abertura de novas áreas e o aprimoramento do monitoramento da cadeia de suprimento da soja adquirida no Cerrado. O debate tem sido muito positivo, com o objetivo de compartilhar responsabilidades e buscar soluções para conciliar a produção e a conservação.
Há um menu vasto de trabalho pela frente: ampliar a oferta de assistência técnica para desenvolver modelos mais sustentáveis de produção, aumentar a adoção de boas práticas, apoiar o produtor rural na regularização ambiental, prospectar mecanismos de pagamentos por serviços ambientais, aprimorar o monitoramento do uso do solo e promover o desenvolvimento socioeconômico no bioma Cerrado.
Mas esse menu tem um vício de origem: ele dá água na boca apenas dos comensais internos. Da mesma forma que colocamos soja, farelo e óleo em mais de uma centena de países, precisamos exportar mundo afora essa agenda de trabalho. E para que isso funcione é preciso que os consumidores, no Brasil e fora dele, enxerguem o que a evidência mostra: a soja não é um vetor determinante no desmatamento do Cerrado.
A crença de que a soja está dizimando o Cerrado brasileiro é simplista e está com o tempo de prateleira vencido. É hora de oferecermos ao consumidor uma gôndola com novos produtos, uma nova agenda de trabalho. E essa agenda passa por valorizar o Código Florestal e o Cadastro Ambiental Rural, mapear as áreas recomendadas para expansão e combater o desmatamento. É a transição de exportadores de produto para exportadores de sistemas mais sustentáveis de produção. O Brasil pode levar tal inovação para o mercado de produtos agropecuários (André Nassar é presidente executivo da Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais – Abiove; O Estado de S.Paulo, 21/4/18)