01/04/2024

“Ainda não vi plano no Brasil para petróleo bancar transição energética”

“Ainda não vi plano no Brasil para petróleo bancar transição energética”

Ana Toni Foto Divulgação iCS

Secretária de Mudança do Clima diz que combustíveis fósseis exigem debate maduro no país e que tempo é maior inimigo do planeta.

A secretária de Mudança do Clima do Ministério do Meio Ambiente, Ana Toni, diz que ainda não viu no Brasil nenhuma estratégia clara que direcione recursos do petróleo para o financiamento da transição energética.

"A Noruega faz isso com o fundo soberano deles, mas ali tem uma estratégia específica", afirma à Folha. "Seria algo a ser debatido. Eu ainda não vi essa proposta aqui no Brasil."

As declarações são dadas enquanto o governo mantém a exploração do petróleo nos planos de longo prazo do país mesmo em meio aos constantes alertas ambientais. "O grande problema é que a gente tem um inimigo maior que é o tempo. Tem uma emergência climática acontecendo", afirma.

No comando da secretaria criada pela ministra Marina Silva (Meio Ambiente) em 2023, Toni está envolvida nas discussões relacionadas ao tema no G20 e na COP30 (Conferência das Partes, encontro da Organização das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas) —ambos no Brasil.

Ela defende mais dinheiro de nações ricas para países em desenvolvimento e diz que o Brasil precisa avançar no debate climático no setor de óleo e gás.

Qual a avaliação sobre o resultado da COP28?
Ela teve um papel muito importante, realmente significativo, no sentido de termos metas setoriais para o setor de energia, que é o que mais polui no mundo. Foi um divisor de águas. E falamos de combustível fóssil, quebramos esse tabu diplomático de não falar sobre o assunto.

Houve coisas importantes, triplicar energia renovável, duplicar eficiência, o "transitioning away", de transicionar para o fim dos combustíveis fósseis. Agora, como é que isso tudo vai ser implementado? Cadê os planos? Como documento, legal, mas, para medir o sucesso, a efetividade de uma COP, a gente precisa de implementação.

Qual a importância do termo "transitioning away"?
Havia a briga entre "phase out" e "phase down", e foi interessante que surgiu outro termo. A gente ainda tem que entender o significado desse acordo, como é que se traduz, nas diversas linguagens políticas. Há uma disputa pela interpretação desse novo termo. A gente está interpretando como "ter uma transição para o fim", como a própria [ministra] Marina [Silva] sempre usa.

 

E quais as expectativas para a próxima COP?
Para a 29 [que acontece neste ano, no Azerbaijão], o tema é a meta global de recursos dos países desenvolvidos para os países em desenvolvimento. Esse tema está minando a confiança no processo de negociação. Foi acordada [em 2015] a meta de US$ 100 bilhões, o que a gente já sabe que é muito pouco pela emergência climática. Mas, por não haver o cumprimento dessa meta até agora, esse tema está paralisando a possibilidade de outros acordos em outras áreas. É isso que a COP29 tem que entregar: quem vai pagar, quando e como.

Qual a melhor estratégia para financiar a transição energética e o combate às mudanças climáticas?
Um dos grandes problemas, se não o maior, é fazer com que os recursos financeiros, que existem, fluam para países emergentes. É o grande tema que a gente colocou no G20. Há países em desenvolvimento que têm muita ambição climática, diria até muito mais do que alguns dos países desenvolvidos, mas não têm os meios e as finanças para implementar a sua ambição. É o caso brasileiro. O plano de transformação ecológica já mostra essa vontade política brasileira. A gente tem ambição, mas podíamos ir muito além. Como é que a gente faz fluir? O Fundo Clima é isso, é simbólico, ele já existia, e agora a gente conseguiu R$ 10 bilhões para ele.

Mas os fundos dão conta?
Vamos precisar de muitas outras [fontes]. Não é suficiente de jeito nenhum, não tenho dúvida. A reforma tributária é um passo na direção certa ao olhar para as finanças funcionais. O que a gente está subsidiando a mais e a menos. Esse debate está muito vivo aqui no Brasil, e esse processo de rever as políticas tributárias é fundamental. Mas não é um ou outro. Tem que fazer tudo ao mesmo tempo, porque a gente vive uma emergência.

Essa definição sobre a reforma tributária virá na regulamentação, quando entram disputas políticas…
São novos instrumentos econômicos. Precisamos lembrar que a economia hoje reflete a consolidação de um processo histórico, de 300 ou 400 anos. Você não muda do dia para a noite. Na COP, falamos de "transitioning away", transição para o fim do combustível fóssil, mas essa transição para o fim do poder político do fóssil vai demorar provavelmente mais, porque é uma economia consolidada. Mas ter chegado a esse termo, que parece ingênuo, dá uma direção do que a gente está fazendo: mudar de uma economia que não era por mal, mas era baseada em combustível fóssil, e ir para uma renovável. Era economia linear, e agora estamos falando de economia circular. É um processo.

Não tenho dúvida de que esse esses novos lobbies da energia renovável vão se fortalecer com o tempo. E outros vão diminuir seu poder político. O grande problema é que a gente tem um inimigo maior, que é o tempo. Tem uma emergência climática acontecendo.

E vai dar tempo?
Não temos um problema de direcionamento, ninguém quer colocar em risco a vida humana. O problema é quão rápido essa mudança acontece, como a gente acelera esses processos ao máximo. Sabemos que dinheiro é poder, e temos um hiperparceiro no Ministério da Fazenda. Então, se a gente conseguir fazer com que a economia dê os sinais certos, a gente tem esperança.

O setor de petróleo, inclusive a Petrobras, estima mais 20 ou 40 anos de uso de fósseis. É um tempo possível?
A Agência Internacional de Energia nos deu um outro número, falou em até o fim dessa década. A gente tem que ser guiado pela ciência. Agora [temos que pensar] que áreas dependentes de combustíveis fósseis podem ser redirecionadas mais rapidamente. Alguns produtos já têm substituto —por exemplo, o plástico de uso único— e outros talvez demorem mais porque não têm [substituto]. [Precisamos identificar] que áreas da produção e do consumo podem andar mais rápido.

E a ideia de usar os fósseis para financiar a transição energética?
Essa ideia não surgiu no Brasil, a Noruega faz isso com o fundo soberano deles. Mas ali tem uma estratégia específica. Não estou falando que é certa, mas eles desenharam o fundo para isso. A gente, aqui, não. Se a proposta fosse "vou explorar o nosso petróleo para descarbonizar a economia como um todo, isso vai demorar cinco, dez anos, e, com esse recurso, vou substituir os plásticos primeiro, depois os carros, vou pagar para todo o mundo ter carro elétrico…", seria algo a ser debatido. Eu ainda não vi essa proposta aqui no Brasil.

Só acho que a gente não está mais nesse momento de achar que pode ter esse luxo [de seguir explorando]. Como falei, o nosso pior inimigo é o tempo. Se explorar, alguém vai usar.

No caso do Brasil, o mais importante para a diminuição da pegada de carbono são o desmatamento e a agricultura, que somam 75% das nossas emissões, e é onde a gente deve centrar. O desmatamento teve queda de 50% [na Amazônia em 2023], estamos fazendo nossa lição de casa.

O agronegócio e os agricultores amadureceram realmente muito, perceberam que são a primeira vítima da mudança do clima. Alguns anos atrás, ninguém poderia sonhar em um presidente falando em desmatamento zero. Era impensável.

Mas o combustível fóssil é 75% da poluição do mundo. É importante que o debate de energia aconteça no Brasil. O debate sobre energia no Brasil ainda não está nessa mesma maturidade. Mas, em outros países, esse debate está acontecendo. A Colômbia chegou a uma saída [que foi cortar os fósseis]. A Noruega, que tem um trabalho muito bom, não decidiu parar, continua explorando petróleo e, para os próximos 30 ou 40 anos, quer continuar. É uma escolha que cada país tem que fazer. A nossa decisão não é de um ministério, é do Conselho Nacional da Política Energética.

 

Mas o agro ficou fora do mercado regulado de carbono…
É, e agora estão conversando e há possibilidade de repensarem. Está certo que as metodologias de mercado de carbono para a área de agricultura não são tão sofisticadas como na área de energia. E também é certo que, no mercado de carbono internacional, só dois países têm isso [o agro dentro do mercado regulado]. Mas no caso brasileiro é absolutamente fundamental que eles façam parte, desde o começo, dessa construção, mesmo que venham e aderir um pouco mais tarde.

Como serão aplicados os R$ 10 bilhões do Fundo Clima?
O Fundo Clima tem seis áreas contempladas já decididas por um comitê. Mas, mais do que só ter dinheiro —que é fundamental—, quando falo de meios de implementação, é porque temos que ter bons projetos [submetidos ao fundo]. No ano passado, todo recurso do fundo foi desembolsado. 100%. Para muitos projetos de energia renovável, ótimos, maravilhosos, mas a gente quer não financiar só energia. A gente precisa entrar em reflorestamento, bioeconomia, infraestrutura. Temos uma necessidade de pensar em outras áreas. A gente está conversando com o Tesouro, com a Fazenda, e mesmo com o BNDES, para construir um fundo para estruturação de projetos.

E esses R$ 10 bilhões são suficientes?
Precisamos de muito mais. Mas você tem que começar [de algum patamar].

Estamos novamente falando de tempo. A velocidade é satisfatória?
Não acho que, depois do governo que tivemos nos últimos anos, daria para acelerar mais do que a gente está acelerando.

O Novo PAC [Programa de Aceleração do Crescimento] tem obras de grande impacto ambiental e prevê verba para os fósseis. Não é uma contradição no governo?
Para as obras que seriam mais degradantes, como a BR-319 e a Ferrogrão [que cortam a Amazônia], foram criadas condicionantes de estudo, pesquisa... E o PAC trouxe a perspectiva climática para escolhas de municípios [contemplados], que é absolutamente inédito. É o suficiente? Precisa de mais? Óbvio, mas só de vincular a estudos é um ganho para a área ambiental.

As condicionantes são suficientes para garantir a sustentabilidade?
É suficiente neste momento, faz parte de um processo.

RAIO-X | ANA TONI, 60

Secretária de Mudança do Clima do Ministério do Meio Ambiente. Graduada em economia pela Universidade de Swansea (País de Gales), mestre pela London School of Economics e doutora pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Tem passagens por Fundação Ford, Greenpeace, Transparência Internacional e Instituto Clima e Sociedade (Folha, 1/4/24)