06/11/2024

Ao censurar livros, Flávio Dino afronta a Constituição – Editorial Folha

Ao censurar livros, Flávio Dino afronta a Constituição – Editorial Folha

O ministro Flávio Dino durante a sessão da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal. Foto Gustavo Moreno - STF

 

Ministro do STF fere a liberdade de expressão ao decidir pelo banimento de obras jurídicas com passagens preconceituosas.

 

É grave a decisão do ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal, que determinou a retirada de circulação, o recolhimento e a destruição dos exemplares à venda de quatro livros jurídicos por conter passagens discriminatórias contra mulheres e a comunidade LGBTQIA+, inclusive com o emprego de termos chulos.

 

Os títulos, publicados entre 2008 e 2009, são da mesma dupla de autores, também condenada a pagar indenização de R$ 150 mil por danos morais coletivos.

 

A menos que se mostre um nexo causal forte entre a publicação de opiniões despropositadas e crimes reais, não cabe ao Estado agir como polícia do pensamento, nem lhe compete promover um controle de qualidade de obras de cunho técnico.

 

Constituição Federal dificilmente poderia ter sido mais clara quando afirma, em dois artigos distintos, o 5º, IX e o 220, que a censura não tem lugar no ordenamento jurídico nacional.

 

No choque entre a liberdade de expressão e outros valores mencionados na Carta, é a primeira que precisa, na maioria dos casos, prevalecer. Se não fosse assim, nem seria necessário afirmá-la como garantia fundamental. Ninguém precisa de licença para dizer o que todos querem ouvir.

 

A salvaguarda constitucional existe justamente para permitir que opiniões controversas e até equivocadas (se é que se pode considerar uma opinião errada) não sejam banidas do debate público. Até algumas décadas atrás, pontos de vista chocantes eram os daqueles que afirmavam não haver nada de errado com homossexuais. Felizmente, tais ideias nunca foram suprimidas.

 

A decisão do ministro preocupa também pelo alcance. Dino não se limitou a estabelecer uma indenização e determinar correções em edições futuras, mas autorizou o recolhimento e a destruição de todos os exemplares à venda e daqueles mantidos em bibliotecas públicas ou privadas.

 

Se o caso serve de precedente, não é difícil imaginar situações surreais. Feministas indignadas com o machismo de Arthur Schopenhauer poderão pedir (e obter) a exclusão de obras do filósofo alemão. Contra o preconceito, judeus poderão pleitear a destruição de pelo menos uma das peças de Shakespeare. Nem a Bíblia, com seus discursos de ódio contra homossexuais, escaparia.

 

Não faz muito tempo que o Supremo era considerado o último refúgio da liberdade de expressão. A corte invariavelmente invalidava ímpetos censórios de juízes e tribunais inferiores, que sempre existiram. Ao que tudo indica, não é mais assim (Folha, 6/11/24)