Aprovar acerto entre UE e Mercosul seria suicídio político de Macron
Legenda: O presidente francês Emmanuel Macron durante discurso na Unesco, em Paris
Por Mathias Alencastro
Agricultura representa menos de 5% da economia francesa, mas ocupa quase metade da superfície nacional.
Florent-Claude é um banal servidor do Ministério da Agricultura em pleno mal-estar existencial. Personagem fictício de “Serotonina”, último romance do mais renomado autor francês da atualidade, MichelHouellebecq, ele testemunha a angústia da França rural desfigurada pela globalização.
Numa das passagens mais emblemáticas do livro, Florent-Claude explica passo a passo como a entrada de produtos argentinos provocaria a extinção dos tradicionais pêssegos-vermelhos do Roussillon.
Frequentemente apontado como um dos intérpretes do conservadorismo francês, Houellebecq vislumbra duas ameaças para a identidade da nação: os imãs muçulmanos e os negociadores do Mercosul.
Nicolas Hulot é um ex-apresentador do popular programa de viagens e aventuras chamado Ushuaia. Uma espécie de Luciano Huck com ideias claras, Hulot se converteu em ativista ambiental e, depois de muita hesitação, aceitou chefiar o superministério da Ecologia idealizado por Emmanuel Macron em 2017.
A experiência durou pouco mais de um ano. Na semana passada, Hulot saiu da reserva para atacar violentamente o acordo entre a União Europeia (UE) e o Mercosul. Florent-Claude e Nicolas Hulot divergem em quase tudo, mas compartilham um ódio visceral aos acordos comerciais.
Atordoado pela revolta dos “coletes amarelos”, Macron sabe que a maior ameaça para o centrismo surge quando gregos e troianos se unem em torno de uma agenda. A agricultura representa menos de 5% da economia francesa, mas a atividade ocupa quase metade da superfície nacional.
O salão da agricultura, megaevento que ocorre todo inverno em Paris, continua sendo o mais importante ponto de peregrinação para os políticos franceses e um teste de popularidade decisivo para presidentes e presidenciáveis.
Para relançar o seu mandato de cinco anos e chegar a 2022 em condições de derrotar Marine Le Pen, Macron precisa consolidar a sua aliança com os ecologistas, que superaram socialistas e afins nas últimas eleições europeias, e os ruralistas, cada vez mais tentados pela candidata de extrema direita.
Principal instigador dessa geringonça de centro, o premiê Édouard Philippe negocia o apoio de prefeitos de regiões rurais e conservadoras nas eleições municipais do próximo ano, tidas como decisivas para o partido de Macron.
Nas condições atuais de pressão e temperatura, aprovar o acordo entre a UE e o Mercosul seria um ato de suicídio político por parte de Macron. Numa só tacada, ele alienaria o apoio dos ecologistas, lançaria a pré-candidatura de Nicolas Hulot e entregaria de bandeja todas as lideranças ruralistas a Marine Le Pen.
No melhor dos casos, Macron vai esperar dias melhores para tentar ratificar o acordo no Parlamento. Num cenário irrealista de vitória esmagadora como em 2017, ele poderia tentar aprovar o acordo no Congresso logo depois das eleições de 2022. Caso contrário, ele pode sabotar o acordo para satisfazer sua base em pleno ciclo eleitoral.
Nesse contexto, o governo Bolsonaro, sua imagem calamitosa na Europa e suas provocações inúteis não passam de um bom álibi para Macron ajustar sua decisão em função das angústias dos camponeses e fazendeiros franceses. (Mathias Alencastro é pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e doutor em ciência política pela Universidade de Oxford (Inglaterra); Folha de S.Paulo, 8/7/19)