22/09/2023

Bancada ruralista reage ao STF e ameaça obstruir votações no Congresso

O presidente da FPA, deputado Pedro Lupion (PP-PR), ameaçou obstruir votações no Congresso por conta da decisão do STF em relação ao marco temporal. Foto Wilton Junior Estadão

 

deputado Pedro Lupion- FOTO WIKIPEDIA

 

 Líder da frente parlamentar, deputado Pedro Lupion diz que julgamento no Supremo Tribunal Federal não impedirá aprovação de projeto no Senado reestabelecendo marco temporal para demarcação de áreas indígenas.

A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) reagiu à derrubada da tese do marco temporal para demarcação de terras indígenas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) nesta quinta-feira, 21. O grupo que reúne 374 parlamentares ameaça obstruir votações no Congresso.

O presidente da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), deputado federal Pedro Lupion (PP-PR), disse que a bancada ruralista vai adotar “todas as estratégias possíveis” para garantir que o Congresso vote projetos que reeditem o marco temporal das terras indígenas - segundo a qual só seriam passíveis de demarcação os territórios ocupados por indígenas na data da promulgação da Constituição de 1988.

A bancada defende a tese descartada pelo Supremo porque limita a demarcação de reservas, impedindo que propriedades rurais corram o risco de desapropriação caso uma comunidade indígena passe a reivindicar como seu o local.

A ameaça foi feita em reação à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que, por 9 votos a 2, decidiu derrubar a tese do marco temporal.

“Nem pautas a favor nem contra o interesse do governo terão nosso empenho enquanto o direito a propriedade no País não for resolvido”, afirmou Lupion em entrevista coletiva na noite desta quinta-feira.

“Quanto à questão das obstruções e estratégias regimentais, vamos adotar todas as possíveis para que a gente consiga aprovar a PEC e resolver o direito de propriedade”, completou.

Segundo Lupion, a bancada ruralista não pode “aceitar passiva essa questão. É uma afronta completa a tudo aquilo que trabalhamos e a agropecuária brasileira”.

Lupion disse ainda que os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), sabem “o que significa ter a FPA como inimigos” e ressaltou que a bancada vai “até as últimas consequências” para fazer valer a tese do marco temporal.

“Lira e Pacheco ambos sabem a influência e o que significa ter a FPA como inimigos. Arthur [Lira] tem sido um excepcional parceiro da nossa frente, Pacheco tem cumprido o que falou conosco, inclusive a tramitação do marco temporal. Vamos ver se ele vai cumprir o compromisso de mandar para o plenário [o projeto de lei do marco temporal] depois que for aprovado na CCJ. Vamos até as últimas consequências para vencer essa batalha”, afirmou.

“Lira e Pacheco ambos sabem a influência e o que significa ter a FPA como inimigos.... Foi montado um calendário contra o agro [no STF] e a gente não pode aceitar isso”, afirmou o presidente da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), deputado federal Pedro Lupion (PP-PR)

Lupion citou até a possibilidade de se instituir uma Constituinte para avaliar a divisão dos Poderes da República. O presidente da FPA criticou o Supremo Tribunal Federal pela decisão sobre o marco temporal e sobre outros casos. Segundo ele, “foi montado um calendário contra o agro [no STF] e a gente não pode aceitar isso”.

“A corda está tão esticada, o relacionamento do STF com o Congresso está tão difícil, que não me surpreenderia uma Constituinte para divisão dos poderes. Claro que é um caso extremíssimo”, ressaltou.

O deputado disse que “decisões como essa [do marco temporal], que são meramente politiqueiras, jogam para o progressismo mundial e não ajudam em nada”.

Segundo Lupion, ao acabar com a referência do marco temporal para só permitir demarcações de terras indígenas ocupadas até 1988, o STF subverteu o entendimento que vinha adotando sobre o tema. “Essa decisão alterou a própria jurisprudência do STF sobre o tema. O marco temporal em hipótese alguma retira direito dos povos indígenas”, disse Lupion. Por 9 votos a 2, o Supremo entendeu que não existe limite temporal de ocupação indígena para a definição de uma reserva.

Lupion classificou a decisão da Suprema Corte de “politiqueira”. “Não consigo entender que tenha sido uma decisão justa pensando na sociedade brasileira. Foi uma decisão muito mais na tentativa de ser simpático ao atual governo e ao progressismo mundial do que pensando na realidade do produtor brasileiro”, afirmou.

Segundo ele, após a decisão do STF, indígenas paraguaios invadiram propriedades em Guaíra (PR). “Prevíamos que poderia ter votação negativa para direito de propriedade do setor produtivo. Há muito temos alertado sobre isso”, acrescentou.

Julgamento

Na sessão do STF, votaram contra o marco temporal o relator do caso, Edson Fachin, e os ministros Alexandre de MoraesCristiano ZaninLuís Roberto BarrosoDias ToffoliLuiz FuxCármen LúciaGilmar Mendes e Rosa WeberNunes Marques André Mendonça foram os únicos a favor da tese defendida pelos ruralistas.

O ministro Celso de Mello, aposentado do Supremo Tribunal Federal, afirma ao Estadão que, sem o direito ao territórios, os povos indígenas ficariam expostos ao risco ‘gravíssimo’ de desintegração cultural e de perda de sua identidade étnica.

Os ministros do Supremo ainda terão que decidir como será definida a indenização de proprietários rurais que perderem suas terras por conta da demarcação de reserva indígena. Os ministros precisam decidir, por exemplo, se a indenização obrigatória for aprovada, como será o cálculo.

É preciso estabelecer se os proprietários terão direito a receber de volta apenas o valor do terreno ou também o que gastaram com eventuais benfeitorias. Outro ponto em aberto é a modalidade do pagamento, se antes ou depois da desapropriação.

Com o caso considerado inconstitucional pelo STF, o Congresso vai continuar discutindo a pauta?

A decisão do STF não impede que o projeto que está em tramitação no Senado continue a ser analisado pelos parlamentares. Caso seja aprovado pela CCJ e pelo plenário da Casa, a proposta ainda precisa passar pela sanção de Lula.

Caso o projeto chegue até a mesa de Lula, ele terá duas opções. Uma delas é a de acatar a decisão da maioria do Congresso e sancionar o marco temporal. A sanção, porém, poderia ser contestada no STF. O outro caminho é vetar a lei, levando em consideração a decisão da Corte.

De acordo com Emanuel Pessoa, doutor em direito pela Universidade de São Paulo (USP), o Senado pode insistir na tramitação do projeto de lei. Porém, o entendimento atual do tribunal tornará a lei passível de ser contestada e derrubada. “Os senadores decidem se vão continuar ou não com o projeto. Mas eles sabem que, com essa posição atual do Supremo, a lei vai ser julgada como inconstitucional. Mas se o Congresso quiser aprovar essa lei, ele pode”, explicou.

Se os parlamentares insistirem na votação do projeto, o Supremo tem pelo menos dois caminhos disponíveis. O primeiro, mais cauteloso, é aguardar a movimentação no Congresso e, se o projeto for sancionado, esperar o ajuizamento de alguma ação para eventualmente derrubar o texto. A segunda alternativa é um controle prévio de constitucionalidade. A atuação preventiva ocorre, via de regra, quando há risco de violação de cláusulas pétreas da Constituição.

Se o marco fosse aprovado no STF, quais seriam as consequências práticas no processo de demarcação de terras?

De acordo com um levantamento feito pelo Estadão, o marco temporal poderia inviabilizar a demarcação de 114 terras indígenas em 185 municípios do País. O tamanho desses territórios soma 9 milhões de hectares, sendo o equivalente a um terço do tamanho do Estado de São Paulo. Atualmente, as áreas indígenas já homologadas têm 119 milhões de hectares (Estadão, 22/9/23)


Marco temporal: Grande vitória, mas não fim da ameaça

O direito dos povos originários à terra é garantido pela Constituição. Foto André Borges EPA

O STF rejeitou nesta quinta (21/09) a tese do marco temporal, que delimitava a demarcação de terras indígenas somente para as regiões ocupadas no ano de 1988, data da promulgação da Constituição Federal vigente.

A decisão é vista como uma vitória pelo movimento indígena, pois evita um retrocesso, dizem, mas não significa que a disputa esteja encerrada e que os direitos dos povos originários aos territórios estejam livres de ameaças.

Isso pois ainda há possibilidade de o Congresso legislar sobre o tema.

"A rejeição do marco temporal pelo Supremo é uma grande vitória", diz Kléber Karipuna, coordenador executivo da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil).

"Mas a bancada ruralista está com uma cobiça nas terras indígenas e quer a todo custo aprovar [no Congresso] uma tese de marco temporal."

Com um placar de 9 votos a 2, a Corte entendeu que o direito dos povos originários a territórios tradicionalmente ocupados não depende da presença dos indígenas no local antes de 1988.

Diversos territórios indígenas que foram tradicionalmente ocupados e com os quais os povos possuem vínculos não estavam sob o controle dos indígenas ou em disputa na data da aprovação do texto constitucional, mas foram reocupados pelos povos originários em anos seguintes.

Para o ministro Luís Roberto Barroso, não existe um "marco temporal fixo e inexorável" para a ocupação dos territórios indígenas.

"A ocupação tradicional também pode ser demonstrada pela persistência na reivindicação de permanência na área, por mecanismos diversos", afirmou Barroso.

Votaram pela rejeição da limitação temporal para oficializar territórios indígenas os ministros Edson Fachin, Luis Roberto Barroso, Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin, Dias Toffoli, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e Rosa Mendes.

Votaram a favor do marco temporal os ministros Kassio Nunes Marques e André Mendonça.

O ministro Nunes Marques, que teve voto vencido a favor do marco temporal, disse que o limite de data cria segurança jurídica para as demarcações.

Já o ministro André Mendonça afirmou que a inexistência de marco cria a possibilidade de exigência de demarcação de áreas ocupadas em tempos imemoriáveis.

A rejeição do marco temporal aconteceu na decisão sobre uma disputa entre o povo Xokleng e o Estado de Santa Catarina, mas tem repercussão geral, ou seja, afeta todos os casos similares.

Atualmente, estão em curso cerca de 300 processos de demarcação cujos resultados serão afetados pela decisão desta quarta.

"O alcance da decisão vai muito além do caso concreto", afirmou o ministro Dias Toffoli em seu voto. Além disso, a decisão vale para inúmeros casos futuros de disputas sobre processos de demarcação.

Há hoje 1,69 milhão de pessoas indígenas no Brasil, o equivalente a 0,83% da população brasileira, segundo os dados já divulgados do Censo 2022 E a maior parte dos indígenas — cerca de 63% — vive hoje fora dos territórios indígenas oficialmente limitados.

Por diversas vezes, indígenas organizaram atos em Brasília contra o marco temporal. Foto André Borges EPA

Juristas indígenas: 'Não é o fim da ameaça'

Apesar da decisão do Supremo, já foi aprovada na Câmara e tramita no Senado um projeto de lei para estabelecer o marco temporal via legislação - algo visto com preocupação pelos povos indígenas, apesar da vitória de hoje para eles.

"Eu não duvido que o Congresso Nacional queira continuar tirando uma queda de braço com o Supremo Tribunal Federal", diz Maurício Terena, coordenador jurídico da Apib.

Os deputados que defenderam o projeto na Câmara vêem com antagonismo o fato do STF estar julgando o temo. O relator do projeto de lei, deputado Arthur Oliveira Maia (União-BA), defendeu que um marco temporal traria "mais segurança jurídica para proprietários rurais". Arthur Lira (PP-Al) reconheceu que o tema avançou rapidamente na casa por causa do julgamento no STF.

“Tentamos um acordo para que a gente não chegasse a este momento", disse Lira. “Nós não temos nada contra povos originários, nem o Congresso tem e não pode ser acusado disso. Agora, nós estamos falando de 0,2% da população brasileira em cima de 14% da área do país", completou, segundo informações da Agência Câmara de Notícias.

Caso o Congresso aprove uma lei estabelecendo um marco temporal, o mais provável é que o assunto volte ao Supremo.

A decisão de hoje fortalece a ideia de que uma lei comum não poderia tratar do tema, que é um direito garantido na Constituição.

Para mudar temas constitucionais, é necessária uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição), que precisa de 3/5 dos votos dos parlamentares para ser aprovada.

"Ainda existe uma possibilidade forte de a bancada ruralista se movimentar e em resposta ao Supremo tentar trazer algo novo via PEC", afirma Kleber Karipuna.

"Vamos continuar alertas em relação a isso para que não tenhamos nenhuma regressão aos direitos dos povos indígenas."

Mesmo uma PEC poderia ser questionada na Justiça.

Se o Supremo entender que o direito aos territórios independentemente de limite de data para a ocupação é uma cláusula pétrea, o tema não poderia ser alterado nem mesmo por uma PEC.

Uma lei sobre marco temporal também poderia ser vetada pelo presidente, mas juristas indígenas acreditam que isso é improvável.

A questão da indenização

Mesmo com a decisão contra o marco temporal, ainda há uma questão a ser decidida no julgamento desta quarta.

Estão em disputa duas visões sobre a possibilidade de indenização de não-indígenas que ocupam terras indígenas que venham a ser demarcadas.

A questão da indenização para os posseiros de terras não estava no caso concreto sendo julgado, explica o advogado Rafael Modesto, que defendeu os Xokleng no caso específico julgado pelo Supremo.

Ela foi trazida no voto do ministro Alexandre de Moraes, que defende que seja estabelecida uma compensação como condição prévia para as demarcações.

Segundo lideranças indígenas, a indenização nesses moldes tornaria inviáveis as demarcações, já que a União não teria orçamento para fazer as compensações em todos os casos de disputa.

Após o voto de Moraes, as organizações indígenas entraram com uma interpelação argumentando contra esse entendimento.

"Na época do fim da escravatura os senhores de escravos queriam ser indenizados por perderem as suas mãos de obra escrava. Talvez a gente esteja diante de um julgamento tão simbólico e civilizacional para o país que novamente se decide se os escravocratas invasores de terras públicas terão direito a sua indenização", diz Maurício Terena.

A outra visão foi trazida pelo ministro Cristiano Zanin, que afirma que a oficialização das terras indígenas não pode depender de indenização prévia de posseiros.

O ministro defende que posseiros de boa-fé que ocuparam terras da União sem saber que se tratavam de áreas indígenas podem até ter direito a indenização, mas ela não estará vinculada à demarcação.

Ou seja, eles precisarão entrar com um processo judicial à parte para serem compensados pela União e a demarcação não depende da existência nem do resultado desse processo.

Para grupos do movimento indígena, esse seria um meio-termo aceitável.

Isso porque, nesse entendimento, os posseiros não teriam direito de propriedade sobre as terras indígenas e os eventuais títulos de propriedade que tenham recebidos foram atos ilegais.

A compensação seria pela atuação irregular da União ao conceder uma área que não poderia ser transferida. E também por eventuais benfeitorias (melhorias) no território feitas pelos invasores.

"Essa decisão traria um equilíbrio se viesse a beneficiar principalmente pequenos agricultores que ocupem área indígena de boa-fé", explica o advogado Rafael Modesto, que defendeu os Xokleng.

"Então ele teria além do direito à indenização das benfeitorias feitas na área de uma indenização por ato ilícito do Estado ou da União. Mas essa compensação não seria dentro do processo de demarcação, mas seria necessário um processo administrativo próprio", diz Modesto.

O que disseram os ministros

O relator do caso, ministro Edson Fachin, disse em seu voto que os "direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam” não depende da existência de um marco temporal nem de um conflito ou controvérsia judicial na data da promulgação da Constituição.

Segundo ele, o processo demarcatório deve ser definido por tradicionalidade da ocupação, verificada por laudo antropológico, não por marco temporal.

Fachin afirma ainda que a ocupação tradicional indígena é diferente da propriedade civil, pois precisa abranger não só a terra habitada, mas a usada para atividades produtivas, a terra imprescindível à preservação dos recursos ambientais necessários para seu bem estar, além das necessárias à sua reprodução física e cultural.

"A função econômica da terra (indígena) se liga, visceralmente, à conservação das condições de sobrevivência e do modo de vida indígena, mas não funciona como mercadoria para essas comunidades”, afirmou o relator.

O ministro Dias Toffoli também entende que a Constituição não estabelece marco temporal para oficializar territórios indígenas e afirma que a Corte faz, com a votação, a "pacificação de uma situação histórica".

O ministro Luis Roberto Barroso, que também votou contra o marco temporal, afirmou que, em casos em que a comunidade indígena foi forçada a se afastar da área de ocupação tradicional, ela pode comprovar o vínculo cultural com laudos antropológicos (BBC Brasil, 31/9/23)