Brasil fracassou ao tentar ser potência em fertilizantes
Teresa Cristina Foto Fabio Rodrigues Pozzebom Agência Brasil
O plano –frustrado– almejava colocar o Brasil no clube restrito dos fornecedores globais, a trinca Canadá, Rússia e Belarus.
A dependência do Brasil da importação de fertilizantes é uma das principais fragilidades do país diante da guerra entre Rússia e Ucrânia.
A situação, no entanto, poderia ser diferente. Uma tentativa de mudar esse cenário foi empreendida pela Vale, que investiu US$ 7 bilhões em mineração de nitrogênio, fósforo e potássio entre 2009 e 2011.
O plano –frustrado– almejava colocar o Brasil no clube restrito dos fornecedores globais, a trinca Canadá, Rússia e Belarus.
Localizadas no Brasil, Argentina e Canadá, as minas que a Vale foi adquirindo produziriam os três itens mais usados pelos produtores rurais brasileiros, que anualmente repõem os nutrientes consumidos pelas lavouras.
Sem esses nutrientes, a produtividade –principalmente da soja, do milho, da cana e do café– ficaria prejudicada. Ou mesmo inviabilizada, do ponto de vista econômico.
Àquela altura, a entrada repentina da Vale na extração de fertilizantes surpreendeu os especialistas, dadas as diferenças abissais entre esse negócio e seu foco original, na mineração para abastecer a metalurgia e a siderurgia.
Já em 2016, alguns anos após o pico das cotações das commodities (2011-13), em prazo curtíssimo para uma mineradora, a Vale acelerou a desmontagem desses projetos, argumentando que haviam deixado de ser economicamente viáveis.
Segundo o economista Ricardo Machado Ruiz, professor do Cedeplar (Centro de Desenvoldimento e Planejamento Regional), da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), a entrada da Vale no ramo de fertilizantes se adequava ao projeto do então CEO Roger Agnelli, que dirigiu a empresa entre 2001 e 2011.
O plano era aprofundar a internacionalização e a especialização em mineração desenhada ainda na gestão do antigo embaixador e ex-presidente da Vale Jorio Dauster.
"A Vale chegou a entrar pesado em fertilizantes. Só na Argentina, o projeto Rio Colorado chegou a ter investimentos próximos a US$ 5 bilhões, mas é preciso tomar cuidado com esses valores porque os minerais oscilam muito", diz Ruiz.
Na avaliação do economista, a entrada no segmento de fertilizantes em 2009 chamou a atenção dos especialistas por serem operações muito distintas. "A Vale pretendia ser um global player nessa área. Entrou em nitrogênio, fósforo e potássio para poder fornecer fertilizantes, um nicho em que só é possível ser um fornecedor relevante no mundo se vender os três itens do [fertilizante] NPK", diz o economista.
A queda das commodities depois de 2014 pegou a empresa altamente endividada.
"Com a saída da Vale, perdemos uma empresa que tem o Brasil como base econômica e política, com projetos de pouco mais de US$ 7 bilhões, saindo da indústria de fertilizantes porque estava sobrealavancada, focando o seu negócio principal, em uma estratégia empresarial defensiva que as circunstâncias na época exigiam", diz Ruiz.
Para o professor da UFMG, foi uma oportunidade e tanto que o país deixou passar.
"Com a Vale, o Brasil tinha a possibilidade de se tornar um player em um setor estratégico para a economia, porque temos um agrobusiness que responde por parte da nossa produção e exportação, e que é importante particularmente para as exportações e a balança comercial", resume o economista, que foi conselheiro do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica).
Procurada, a Vale não se manifestou até a publicação da reportagem.
"A saída da Vale mostra a incapacidade dos governos brasileiros de formular soluções para setores críticos, apostando que a globalização seria algo incontestável", argumenta Ruiz.
"Numa lógica empresarial, a Vale tomou a decisão correta. Incorreta foi a incapacidade do Brasil de formular uma política com fontes confiáveis para insumos estratégicos como os fertilizantes."
A conta da inoperância agora bate na porta com as dificuldades de importação de fertilizantes em decorrência da guerra entre Rússia e Ucrânia, tirando o sono de produtores rurais no Brasil todo, em particular os do cerrado, cujo solo menos rico em nutrientes exige maiores doses de fertilizantes aplicados anualmente.
Resta a saída precária encontrada pela ministra Tereza Cristina, da Agricultura, que desembarcará no Canadá em busca de mais fertilizantes, enfrentando um jogo em que a demanda encontra hoje um mercado "travado", como dizem os especialistas.
A agricultura brasileira foi pega no contrapé, já que muitos produtores fecharam 2021 com a expectativa de que os gargalos logísticos e de produção surgidos na pandemia estariam solucionados a partir do segundo trimestre.
"No início do ano, os nitrogenados já estavam caindo, e era esperado que, passado o período do plantio da safra no hemisfério Norte, os preços dos fertilizantes começassem a cair. Mas a entrada da Rússia na guerra provocou um revés no mercado, e será muito difícil resolver esse problema a curto prazo porque a falta de fertilizante é generalizada", diz José Carlos Hausknecht, da consultoria MB Associados.
"A ministra disse que até outubro não teremos problemas, mas até outubro não plantamos nada, por isso não irá faltar. E estamos com os estoques muito baixos", afirma.
Já a Anda (Associação Nacional para Difusão de Adubos) estimou em nota do dia 3 que o país tem estoque para três meses, deixando claro que esses produtos estão no mercado, não em estoques oficiais que poderiam ser distribuídos de forma organizada.
"Estamos há anos com a capacidade de produção de fertilizantes estagnada. Temos todo o problema do custo Brasil que dificulta a exploração, além de nossas reservas não serem suficientes", afirma Hausknecht.
"Poderíamos usar o gás natural para fazer os [fertilizantes] nitrogenados, mas o custo do gás aqui é muito elevado, acaba ficando mais barato importar do que produzir."
A dificuldade de concorrer se ampliou em 1997, quando o governo Fernando Henrique Cardoso isentou de impostos os fertilizantes importados, que são tributados somente no caso de circulação por mais de um estado brasileiro.
E a situação é mais complicada porque a Belarus também está embargada –empresas brasileiras que negociarem com o país podem sofrer represálias dos EUA e União Europeia, que impuseram sanções em 2020 por considerar que o ditador Aleksandr Lukachenko, aliado de Vladimir Putin, fraudou a eleição presidencial.
Para o analista sênior Bruno Fonseca, do Rabobank, especialista em insumos agrícolas, a estratégia do governo federal de minimizar a escassez é apropriada, já que a duração da guerra é imprevista.
"Será difícil conseguir repor tudo o que a Rússia nos fornece, é um volume muito grande, mas provavelmente vamos conseguir aumentar as compras no Canadá com preços mais altos", resume Fonseca.
No caso mais crítico, do cloreto de potássio, Canadá, Rússia e Belarus somam 80% da necessidade brasileira. "E, no cloreto de potássio, vamos ter de competir com os EUA", diz Fonseca, que cita a Europa como outro concorrente de peso.
Uma das maiores consumidoras de fertilizantes e de alimentos do mundo, a China está construindo suas bases agrícolas e de exploração mineral na Eurásia e na África, o que, na avaliação de Ruiz, da UFMG, poderá criar um problema para o Brasil em alguns anos.
"Com essa estratégia, a China pode se tornar global player em agribusiness, usando fertilizantes da Rússia. Com isso, pode ocorrer um deslocamento da oferta russa para a Eurásia e a África", diz Ruiz.
"Não poderíamos ter deixado o agribusiness brasileiro com um flanco desse tipo aberto. Hoje, temos desconfiança sobre a oferta mundial, e o governo brasileiro sofre pressões e restrições de oferta de grandes produtores de fertilizantes, em particular da Rússia, que, aliás, recentemente comprou aqui a Eurochem" (Folha de S.Paulo, 6/3/22)
Guerra na Ucrânia expõe dependência brasileira por adubo importado e safra pode ser menor
GUERRA UCRANIA - DIVULGACAO
Dos 40,6 milhões de toneladas de fertilizantes consumidos pela agricultura, 81% vêm de fora, especialmente da Rússia; sem produção interna, a solução é buscar outros fornecedores externos.
Em 30 anos, o Brasil passou de uma safra de 100 milhões para quase 300 milhões de toneladas de grãos. Consolidou-se como um dos mais importantes produtores e exportadores agrícolas globais, uma potência em segmentos como soja, milho, café, cana-de-açúcar e laranja, entre outras culturas. Mas a capacidade de produção de fertilizantes não acompanhou esse salto. Na verdade, até recuou – em 2017, o País produzia 8,2 milhões de toneladas, número que caiu para 6,5 milhões em 2020.
Para sustentar o avanço das lavouras, foi necessário ampliar a importação dos fertilizantes. Segundo dados da Associação Nacional para Difusão de Adubos (Anda), em 2020 o mercado brasileiro consumiu 40,6 milhões de toneladas. Desses 32,9 milhões (81%) vieram de fora. Uma boa parte disso, da Rússia. E, com o mercado russo fechado por causa das sanções provocadas pela guerra na Ucrânia, o Brasil tem um problema de razoáveis proporções para ser resolvido.
“Precisamos fomentar a produção aqui dentro”, diz Ricardo Tortorella, diretor executivo da Anda. “O governo está anunciando um plano nacional de fertilizantes, pois temos o insumo debaixo da terra, mas precisa de muita coisa para colocar esse produto no mercado, como logística, regras e licenças. O plano é oportuno, mas foi desenhado para os próximos 30 anos (leia mais abaixo). Não é a solução para o problema que temos agora.”
Segundo ele, o Brasil vai precisar de 10 milhões de toneladas de cloreto de potássio para a próxima safra, e a expectativa é de que 3 milhões venham da Rússia. “Se não vierem, vamos ter de comprar de outros países, como o Canadá. O problema é que o mundo inteiro se abastece na Rússia, e muitos países vão procurar alternativas, não só o Brasil.”
Segundo dados da associação, o Brasil é o quarto maior consumidor de fertilizantes, atrás da China, da Índia e dos Estados Unidos, mas é o maior importador mundial desses insumos – basicamente nitrogênio (N), fósforo (P) e potássio (K). Isso se explica pela composição dos solos brasileiros, pobre em nutrientes, devido à sua característica tropical, principalmente na região do cerrado, onde se concentra a maior produção de grãos.
RISCOS
Para a safra atual, por conta dos preços, que já vinham altos antes mesmo de começar o conflito no Leste Europeu, os produtores não anteciparam as compras de fertilizantes no volume de anos anteriores. “O que os agentes do mercado comentam é que a antecipação foi em torno de 30% este ano”, disse Tortorella. “No ano passado, na mesma época, estava acima disso. E a guerra pode impor riscos para a próxima safra. Se o conflito acabar de hoje para amanhã, os fluxos de insumos da Rússia para o Brasil vão continuar. Se demorar até três meses, temos de buscar soluções que ajudem nossa safra a manter seu ritmo, que tem sido crescente.”
Para o especialista em questões globais do agronegócio e sustentabilidade, Marcos Jank, faltou investimento nas últimas décadas na produção nacional de fertilizantes. “Houve muitos projetos que não foram aprovados por falta de licenciamento. Nos tornamos o maior importador mundial.”
Ele lembrou que o avanço na produtividade de grãos do País implicou maior consumo de adubos. “Passamos a fazer duas safras anuais, a ter mais produtividade sem aumento de área, a fazer a integração pecuária-agricultura, tudo com um consumo maior de fertilizantes. Só que não houve política para aumentar a produção interna e, sem esse incentivo, ficava mais caro produzir aqui. Era mais fácil importar, e o Brasil passou a recorrer ao mercado externo, gerando a dependência que temos hoje.”
Jank não vê possibilidade de reversão desse quadro em um prazo curto. “O pessoal está falando que agora precisa ter o plano nacional de fertilizantes, mas isso não vai resolver o problema imediato”, disse. “Nessa altura, a melhor solução é diversificar a importação para não depender de um mercado só, como acontece com a dependência da Rússia.”
Plano do governo deve sair neste mês
O governo prepara o lançamento do Plano Nacional de Fertilizantes, que deve ser apresentado por meio de um decreto presidencial até o fim de março. O principal objetivo do programa é diminuir a dependência externa de adubos do País, atualmente em 85%, por meio da ampliação da produção local.
O texto já vinha sendo preparado internamente pelo governo e ganhou força depois da guerra da Ucrânia, que traz incerteza sobre o fornecimento dos produtos para o País.
A Rússia é um dos maiores produtores de fertilizantes. É o segundo maior exportador mundial de nitrogenados e terceiro maior exportador global de fosfatados e potássicos, contribuindo com 16% dos adubos exportados no mundo. Os russos são os principais fornecedores de adubo ao Brasil, com cerca de 20% do volume utilizado anualmente.
“O decreto vai apresentar as bases e diretrizes do plano”, disse ao Estadão/Broadcast o diretor de Programas da Secretaria Executiva do Ministério da Agricultura, Luis Eduardo Rangel. Ele representa a pasta da Agricultura no Grupo de Trabalho Interministerial que discute o tema no governo.
REDUÇÃO
Segundo Rangel, o plano está pronto do ponto de vista técnico e já foi apresentado informalmente ao presidente Jair Bolsonaro. O projeto está sendo desenvolvido desde o fim de 2020, em parceria com outros órgãos do governo. A meta é reduzir a necessidade de importação de adubos dos atuais 85% para cerca de 60% em 30 anos e, consequentemente, a exposição do setor a oscilações externas.
O plano inclui objetivos e orientações de curto (5 anos) e médio prazos (10 anos) em relação à redução gradativa da dependência do País de fornecedores internacionais, de acordo com a necessidade de cada nutriente. Estão previstas revisões anuais para o plano. “As metas são muito sólidas”, avaliou.
O plano deve ser dividido em quatro grandes grupos de adubos: nitrogenados, potássicos, fósforo e cadeias emergentes (como adubos biológicos). Cada um deles conta com metas específicas no plano e também com um mapeamento da oferta nacional, mundial e do potencial brasileiro. “São metas específicas porque o grau de dependência varia e também o potencial de produção local, assim como o diagnóstico de cada cadeia”, disse (O Estado de S.Paulo, 6/3/22)