China acha no Brasil sua maneira de substituir os agricultores americanos

Produtores americanos de soja temem perder ainda mais mercado entre os chineses por conta da guerra comercial iniciada por Trump.
Uma leguminosa com cerca de um centímetro de tamanho, ela é consumida da vagem como edamame (um petisco popular no Japão) ou processada em tofu, leite de soja e outros produtos. Mas não é por isso que ela é uma das commodities mais lucrativas do mundo. Rica em gordura e proteína, a soja é o alimento de grande parte do gado do mundo.
E agora essa humilde colheita está no centro da guerra comercial entre os Estados Unidos e a China.
Os Estados Unidos vendem mais soja para a China, em termos de valor, do que qualquer outro produto. No ano passado, foram mais de 27 milhões de toneladas, no valor de US$ 12,8 bilhões, ou cerca de 9 centavos de cada dólar de mercadorias que os Estados Unidos venderam para a China.
Porém, com as enormes tarifas impostas entre os dois países nas últimas duas semanas, essas vendas provavelmente serão prejudicadas em breve. Essa é uma má notícia para os agricultores americanos que cultivam soja e para os criadores chineses de frangos e suínos que os compram - e, potencialmente, uma ótima notícia para o país que está pronto para intervir: o Brasil.
Os produtores americanos de soja estão preocupados com a possibilidade de seu maior cliente continuar indo às compras. Mais da metade das exportações de soja dos EUA foi para a China no ano passado, mas o preço acabou de subir 135% com as tarifas que a China anunciou em resposta ao imposto de 145% do presidente Donald Trump sobre as importações chinesas.
“Os agricultores lidam com o mau tempo. Lidamos com pragas. Lidamos com quebra de tratores”, disse Heather Feuerstein, proprietária de uma fazenda perto de Grand Rapids, Michigan. “Essa é a nossa vida.”
E as tarifas? “Isso é uma ameaça à continuidade de nosso modo de vida”, disse.
Embora Donald Trump diga que seu baluarte de tarifas criará um renascimento dos produtos fabricados nos Estados Unidos, milhares de produtores de soja, como Heather Feuerstein, temem que ele devaste a agricultura americana no processo.
Ao mesmo tempo, ele poderia, inadvertidamente, estar ajudando os produtores de soja do Brasil e da Argentina.
Os dois países sul-americanos produzem 52% da soja do mundo, sendo 40% somente do Brasil, em comparação com 28% dos Estados Unidos. Nenhum outro país se aproxima.
“Quando não puderem obtê-la dos Estados Unidos, eles precisarão obter mais do Brasil”, disse Neusa Lopes, uma das principais executivas da Girassol Agrícola, uma grande produtora de soja no maior Estado produtor de soja do Brasil, Mato Grosso. “E para tirar mais do Brasil, eles terão de pagar mais por isso.”
O mercado de soja envolve uma complicada rede de negociadores de commodities, empresas de transporte e contratos futuros, de modo que os preços costumam ser um alvo móvel, mas os preços à vista na semana passada mostraram que a soja sul-americana se tornou mais valiosa na esteira das tarifas.
Neusa Lopes, cuja empresa planta soja e milho em uma área de cerca de 70 mil hectares, uma área quase do tamanho dos cinco distritos da cidade de Nova York, disse que agora pode vender uma saca de 60 kg de soja por cerca de US$ 21, um aumento de 10% em relação ao mês passado. A maior parte de sua safra vai para a China, que já é, de longe, o maior comprador de soja do Brasil. Mas agora ela espera ganhar mais pela mesma safra.
Os preços estão subindo mais tarde do que os agricultores brasileiros e argentinos gostariam. A temporada de colheita está terminando na América do Sul, e eles já venderam quase três quartos de seus estoques, disse André Nassar, presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais, que representa os maiores produtores de soja do país. Mas aqueles que ainda não venderam estão agora capitalizando - ou segurando e apostando que a guerra comercial vai durar, o que provavelmente significará preços ainda mais altos no futuro.
Em outras palavras, os sul-americanos estão muito bem posicionados.
A cerca de 6,5 mil km ao norte, Heather Feuerstein está em uma situação difícil. A virada anual das estações significa que ela deve começar a plantar seus mais de 80 hectares em breve. Se ela trabalhar duro, o clima cooperar e os insetos forem controlados, no final do outono ela colherá mais de 270 toneladas de soja.
Uma parte poderá ser vendida para laticínios locais ou para uma unidade de esmagamento próxima, onde a soja é processada em óleo e farelo. Outra será vendida imediatamente após a colheita para uma empresa de armazenagem local ou armazenada na própria fazenda para venda posterior.
“Eu adoraria ter uma bola de cristal neste momento”, disse Feuerstein. “Não acho que nada do que temos feito tradicionalmente seja necessariamente o que deveríamos estar fazendo agora. Acho que tudo está mudando de minuto a minuto.”
Esperar pelo melhor
Os produtores de soja americanos dizem que não há muito que possam fazer além de plantar e esperar pelo melhor. Muitos alternam seus campos entre milho e soja, para melhorar a saúde do solo e diversificar. Mas eles já compraram suas sementes, fertilizantes e outros equipamentos e não podem fazer a rotação em um piscar de olhos.
Em vez disso, suas esperanças estão em alternativas de longo prazo, que não podem substituir a China hoje, mas talvez possam em uma ou duas décadas. Organizações como o U.S. Soybean Export Council (Conselho de Exportação de Soja dos EUA) e a American Soybean Association (Associação Americana de Soja) estão tentando desenvolver mercados maiores em países como Índia, Egito e México. Novas fábricas de esmagamento de soja estão entrando em operação nos Estados Unidos, e os pesquisadores estão estudando a soja como biocombustível e outros usos não alimentares.
Os Estados Unidos já percorreram esse caminho antes. Durante seu primeiro governo, Trump iniciou uma guerra comercial contra a China, e os produtores de soja brasileiros foram os beneficiários. De 2017, pouco antes dessa guerra comercial, até o ano passado, a China aumentou suas importações anuais de soja brasileira em 35%, para 72,5 milhões de toneladas, enquanto reduziu as importações de soja dos EUA em 14%, para 27 milhões de toneladas, de acordo com dados dos dois países.
“Isso não se reverteu. Permaneceu”, disse Nassar. “Se a China mantiver tarifas altas sobre as commodities americanas, o mesmo acontecerá. Haverá outra substituição das exportações americanas pelas brasileiras.”
O que é diferente desta vez - além das tarifas muito mais altas - é que a China investiu dinheiro em armazéns, ferrovias, portos e outras infraestruturas no Brasil na última década para levar mais soja do país para os navios chineses.
Isso inclui a inauguração este ano de um terminal gigante no maior porto da América Latina, em Santos, Brasil. A Cofco, gigante estatal chinesa do setor de alimentos, está por trás do projeto de quase US$ 500 milhões, que se tornará seu maior porto fora da China.
A China parece ansiosa para reafirmar esses laços. Na semana passada, o vice-ministro da agricultura da China se reuniu com as principais autoridades agrícolas do Brasil. E o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, anunciou que viajaria a Pequim para se reunir com seu colega chinês, Xi Jinping, no próximo mês. Lula ainda não conversou com Trump desde que ele foi eleito.
A única coisa que impediu a ruína dos agricultores americanos durante a última guerra comercial foi um programa de resgate do governo de US$ 23 bilhões. O governo Trump está novamente contemplando um resgate agrícola - um reconhecimento tácito de que as tarifas retaliatórias prejudicarão os agricultores -, mas não há garantia de que isso compensaria todas as perdas.
“Ficamos muito gratos pela assistência emergencial que recebemos”, disse Feuerstein, “mas ela não recuperou nossas fazendas e acabou com nosso maior mercado de exportação” (The New York Times, 20/4/25)