Como a Amazônia se tornou a maior área de pasto do Brasil
De 1985 a 2022, o espaço tomado por pastos saltou de 137 mil km2 para 577 mil km2 em toda a Amazônia. Foto Reuters
Por Nádia Pontes
Levantamento do Mapbiomas mostra que a Amazônia ultrapassou o Cerrado e concentra maiores pastagens do país, com área equivalente ao tamanho de Minas Gerais.
A região que ainda abriga a maior floresta tropical do mundo entrou para um outro ranking que compete com sua vegetação nativa. A Amazônia é, desde 2022, o bioma que tem a maior área de pastagem do Brasil.
A conclusão faz parte do levantamento mais recente feito pelo Mapbiomas sobre o uso da terra no país e publicado nesta sexta-feira (06/10). A iniciativa, fundada em 2015, é um esforço que reúne universidades, ONGs e empresas de tecnologia na análise das mudanças de paisagens no território nacional.
De 1985 a 2022, o espaço tomado por pastos saltou de 137 mil quilômetros quadrados para 577 mil quilômetros quadrados em toda a Amazônia. É como se, nestes 38 anos, a área dedicada ao gado saísse de um território equivalente ao estado do Amapá e passasse a uma Minas Gerais.
"A gente vê nesses números uma dinâmica que acompanha a fronteira agropecuária no país. O processo de ocupação da Amazônia se deu pelo desmatamento, e uma maneira de consolidar esta apropriação de terras foi com pasto”, comenta Laerte Ferreira, coordenador do Laboratório de Processamento de Imagens e Geoprocessamento (Lapig) da Universidade Federal de Goiás (UFG), em entrevista para a DW.
As análises foram feitas com base no processamento de mais de 200 mil imagens. Os dados são gratuitos e os códigos usados nos modelos são públicos, destaca Ferreira.
A Amazônia concentra 43% do rebanho bovino do país. Foto picture-alliance-dpa-AP-L. Correa
Nas últimas décadas, os estados amazônicos que mais transformaram floresta em pasto foram o Pará (185 mil km2), Mato Grosso (155 mil km2), Rondônia (74 mil km2), Maranhão (54 mil km2) e Tocantins (45 mil km2).
O crescente avanço do gado sobre a Amazônia deixou o Cerrado para trás. Nesse bioma, o segundo maior do Brasil, a área de pastagem registrou uma pequena queda, de 550 mil km2 para 513 mil km2 entre 2013 e 2022.
"Sob a pata do gado"
Na Amazônia Legal, formada por nove estados, quase metade dos pastos são recentes, com menos de 20 anos. O bioma concentra a maior parte (43%) do rebanho bovino do país, com mais de 96 milhões de cabeças de gado – o triplo do número de moradores –, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Ibge).
"Foi na pata do boi que a gente viu este grande maciço de floresta ser comido pelas beiradas e virar a maior área de pastagem do Brasil”, analisa Ane Alencar, diretora de Ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam).
Embora a atividade pecuária seja importante para a economia do Brasil, líder global no ranking de rebanho bovino, a atividade teria um lado "perverso” na Amazônia, afirma Alencar.
"Ela é muitas vezes uma fachada para especulação de terra, que é um dos principais vetores do desmatamento. Muitas dessas áreas não são pastagens produtivas de verdade, mas usadas para demarcar um território que, supostamente, tem um dono”, explica a pesquisadora.
Na engrenagem que move o desmatamento na região, áreas de floresta pública são invadidas e bois são colocados no terreno para demonstrar posse. "O investimento do invasor não pode ser muito alto porque o risco de perda da área é grande. Por isso a pecuária avançou tanto na região, porque o boi é relativamente fácil de manejar – e de vender”, argumenta Alencar.
Áreas de floresta pública são invadidas e bois são colocados no terreno para demonstrar posse. Foto Getty Images-AFP-A. Scorza
Um estudo recente publicado por cientistas do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia e da Universidade da Flórida tentou estimar o tamanho dessa apropriação ilegal de terras públicas. Eles analisaram as cidades com maior avanço da fronteira agropecuária no estado do Amazonas e concluíram que 46% das supostas propriedades reivindicadas estão dentro de áreas protegidas.
Expansão agro
Em 2022, a área ocupada por todas as atividades agropecuárias se estendeu por um terço do território nacional. Nos últimos 38 anos, a expansão do setor foi de 50%, aponta a nova coleção de dados do Mapbiomas.
Dentre as culturas temporárias, a da soja tem ganhado relevância também na Amazônia. Nas últimas duas décadas, o plantio passou de 10 mil km2 para os atuais 70 mil km2. O Cerrado tem hoje a maior área dedicada ao grão, com 180 mil km2, o equivalente a 11% do bioma.
O café, historicamente estabelecido no país, desponta entre as lavouras perenes: representa 55% das culturas do tipo mapeadas em 2022.
A conversão direta de vegetação nativa para agricultura permaneceu relativamente constante no período analisado. O que mudou foi sua distribuição geográfica: as novas fronteiras agrícolas se concentram principalmente nas zonas chamadas de Matopiba – que engloba Tocantins, partes dos estados do Maranhão, Piauí e Bahia – e Amacro, que inclui o sul do Amazonas e parte do Acre.
Intensificar e recuperar
Para Laerte Ferreira, da UFG, o processo de degradação das pastagens brasileiras também chama a atenção. Só no Cerrado, 60% delas apresentam algum estado de deterioração, apontam estudos liderados pelo pesquisador.
"É preocupante, mas representa uma oportunidade. Toda esta reserva de terras abertas pode ganhar outros usos”, afirma Ferreira.
Outros estudos feitos pelo Mapbiomas mostram que a recuperação de pastagens aumenta o estoque de carbono no solo, o que poderia compensar de 60% a 70% das emissões de gases de efeito estufa provenientes da pecuária.
"Temos que falar seriamente sobre a necessidade de intensificar a pecuária, usar áreas já desmatadas, aumentar a eficiência. As pastagens na Amazônia são pouco eficientes do ponto de vista produtivo. Poucas cabeças de gado ocupam áreas muito grandes”, sublinha Ane Alencar, do Ipam (DW, 6/10/23)
Amazônia perdeu 1 milhão de hectares de superfície hídrica
Poluição no rio Cuninico, Peru superfícies hídricas são base de subsistência para populações inteiras. Foto Peru s Public Prosecutor s Office AFP
Brasil está entre nove países amazônicos cujas reservas de água minguaram consideravelmente na última década. Derretimento de glaciares andinos também preocupa. Consequências vão de saúde a segurança alimentar.
Os nove países com floresta amazônica em seu território perderam 1 milhão de hectares de superfície de água na última década, segundo uma pesquisa científica inédita divulgada nesta quarta-feira (20/09) pela plataforma MapBiomas. Sua conclusão é que Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Guiana Francesa, Peru, Suriname e Venezuela estão à beira de uma mudança drástica em sua superfície hídrica.
"A média histórica de superfície de água nessa vasta região no período entre 2000 e 2022 é de 25,4 milhões de hectares. Mas na última década, todos os países amazônicos tiveram redução da superfície hídrica", informou o relatório Água Países Amazônicos. "Ao comparar a média da última década com a média histórica do período, foram perdidos 1 milhão de hectares nos nove países amazônicos."
A MapBiomas chamou atenção para o fato de que a perda se deu apesar do acréscimo de 747 mil hectares de superfície hídrica em 2022, em relação à média histórica. O Brasil, que representa 72% do total da superfície dos países amazônicos, foi o maior responsável por esse ganho, apresentando 910 mil hectares em 2022 acima da média histórica de 17,9 milhões de hectares. Em contrapartida, quem mais perdeu superfície aquática na década foi o Peru.
"De forma geral, no entanto, os nove países amazônicos passaram por uma série de transformações nos seus recursos hídricos nas últimas duas décadas, que resultaram numa tendência generalizada de retração da superfície hídrica", consta da MapBiomas. Para Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Guiana Francesa, Peru, Suriname e Venezuela, os anos 2013 a 2021 foram o período com menor superfície aquática na série histórica analisada.
"Há três países que apresentaram uma redução da sua superfície hídrica durante todo o intervalo entre 2000 e 2022, que são Equador, Peru e Bolívia. Os outros seis países apresentaram um período de aumento e outro de redução em relação à média histórica, que ocorreu entre 2013 e 2021", informou Eva Mollinedo, da Fundação Amigos da Natureza (FAN-Bolivia) e integrante da equipe da MapBiomas Água Países Amazônicos.
Consequências da mudança climática
O relatório indicou que a redução da superfície aquática também fica evidente numa tendência sustentada de derretimento dos glaciares entre 1985 e 2022, quando todos os países andinos sofreram perda de águas glaciares. A maior extensão foi no Peru, mas a Venezuela, o país com menor cobertura glacial, sofreu a maior perda relativa.
"Essa diminuição pode ter impacto econômico nas populações dos Andes tropicais, com efeitos na agricultura, no abastecimento de água potável e na integridade dos ecossistemas", alertou Juliano Schirmbeck da Geokarten, também integrante da Água Países Amazônicos.
Ele acrescenta que os glaciares são "uma espécie de termômetro da Terra, já que sua expansão ou redução está intimamente relacionada ao clima global". E as perdas devem-se ao "aumento da temperatura causado pela aceleração das mudanças climáticas globais".
Carlos Souza Júnior, do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) e que também integra a equipe, lembrou que isso agrava problemas de saúde e dificuldades de acesso a alimentos, prejudicando sobretudo as populações com menos recursos econômicos. Além disso, "a diminuição da superfície aquática contribui para a proliferação de incêndios florestais e emissões de gases com efeito de estufa, o que afeta tanto a biodiversidade como as comunidades locais" (DW, 6/10/23)