Contradições ambientais de Lula - Editorial O Estado de S.Paulo
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Embora faça discursos grandiloquentes sobre o papel do Brasil na descarbonização, Lula destina poucos recursos para combustíveis de baixo carbono e investe na indústria petrolífera.
É do dramaturgo grego Eurípides uma frase que expressa bem os limites e descontroles do comportamento humano: “A minha língua jurou, mas o meu espírito manteve-se livre de juramentos”. Não consta que no rol de leituras do presidente Lula da Silva esteja a peça Hipólito, mas a inspiração da tragédia grega espelha com precisão suas escolhas. A participação brasileira na COP-28 reafirmou as contradições de Lula e de seu governo em matéria ambiental, além da habitual e indisfarçável prática do presidente de dividir retórica e prática em dois mundos absolutamente distintos.
Exemplos não faltaram. Num dos mais eloquentes, o presidente tentou cadastrar-se na pasta dos líderes globais mais críticos dos combustíveis fósseis, sublinhando que o planeta “está farto de acordos climáticos não cumpridos” e de “metas de redução de emissão de carbono negligenciadas”, entre outros recados. Para o presidente, “é hora de enfrentar o debate sobre o ritmo lento da descarbonização do planeta e trabalhar por uma economia menos dependente de combustíveis fósseis”.
Seria uma cobrança legítima não fosse o fato de, poucas horas antes, seu ministro de Minas e Energia ter acenado para a adesão do Brasil à Opep+, o grupo de aliados da Organização de Países Exportadores de Petróleo, hoje fortemente criticados por não reduzirem a exploração de combustíveis fósseis e, ao contrário, sinalizarem aumento de produção. Como este jornal já afirmou, os subsídios aos combustíveis fósseis e o aceno à Opep+ não somente são contraditórios, como contraproducentes. Na condição de ouvinte, o Brasil ganhará, no máximo, acesso antecipado às decisões do cartel. E, diferentemente dos países que integram o cartel, a economia brasileira não depende exclusivamente do petróleo.
É o problema da língua presidencial que jura, mas o coração não. O mesmo governo que ambiciona ser uma liderança mundial em política climática quer apoiar a expansão da produção de petróleo com a perspectiva de se tornar um grande exportador. O mesmo governo que une os ministros da Fazenda e do Meio Ambiente para anunciar o Plano de Transição Ecológica alimenta o cabo de guerra entre os Ministérios do Meio Ambiente e de Minas e Energia.
Lançado há cerca de três meses, o novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) fez da transição energética um dos seus principais eixos e âncora do discurso governamental sobre um suposto novo tempo para o País. Pouca gente registrou, no entanto, que na prática 62% dos recursos carimbados como transição energética serão usados para finalidades que perpetuam o mesmo tipo de dependência do petróleo. Isso mesmo: de um total de R$ 1,4 trilhão em investimentos em todas as áreas, cerca de R$ 450 bilhões serão destinados a projetos de “transição e segurança energética”, mas o investimento para combustíveis de baixo carbono, como etanol e biometano, ficou em modestos R$ 20 bilhões, um valor 13 vezes inferior ao que será alocado para a indústria petroleira.
A contradição é privilégio dos homens inteligentes e dos governos realistas, dizia o economista e diplomata Roberto Campos, conhecido por ser um de nossos mais brilhantes liberais e pela ironia fina com que retratava líderes de esquerda e governos em geral. O governo Lula abusa de tal privilégio. Seria prova de seu realismo se conjugasse melhor a retórica presidencial e os fatos. A substituição de fontes de energia não se dará num estalar de dedos, e uma transição levará anos ou mesmo décadas. É o que reforça o acerto, por exemplo, da intenção de explorar petróleo na Margem Equatorial. Gostemos ou não, a economia global continuará a ser abastecida pelos combustíveis fósseis nos próximos anos. Uma demanda que o Brasil não pode desperdiçar.
Uma coisa é preservar investimentos e exploração, reduzindo progressivamente os combustíveis fósseis e expandindo as energias renováveis. Outra coisa, bem diferente, é sustentar no gogó a premissa de que o governo está ancorado num novo modelo de desenvolvimento e num novo padrão de uso de energia, enquanto sua prática e seu planejamento orçamentário contradizem tais prioridades. Narrativas não substituem as evidências, e estas demonstram que, na prática, o coração de Lula ainda parece estar num lugar bem distante do que sua língua promete (Estadão, 7/12/23)