Criadores questionam ferramenta para rastrear fornecedor indireto de gado
Pecuaristas demonstram preocupação com as propostas anunciadas na semana passada por grandes frigoríficos para garantir a rastreabilidade total da cadeia produtiva de carne bovina na Amazônia e, assim, eliminar o risco de aquisição de animais provenientes de fazendas com irregularidades socioambientais. O ponto que mais causa apreensão entre os criadores é a solicitação, por parte dos frigoríficos - principalmente da JBS -, das Guias de Trânsito Animal (GTAs) referentes aos fornecedores indiretos, ou seja, aqueles que venderam os bezerros e bois magros para que o pecuarista engorde e envie para abate. GTA é um documento emitido eletronicamente, obrigatório em qualquer transação com animais vivos no País e que deve acompanhar o transporte do gado. Quem administra a emissão de GTAs é o Ministério da Agricultura.
Em uma operação normal entre frigorífico e pecuarista, a GTA é emitida pelo produtor na hora da venda do gado para abate. A este documento a indústria tem acesso normalmente, já que é parte da transação. Ela não tem acesso, porém, às GTAs emitidas pelos pecuaristas quando estes adquirem o gado dos fornecedores indiretos da cadeia produtiva, ou seja, criadores que trabalham com bezerros e bois magros e vendem esses animais para a fazenda de engorda.
Saber a proveniência desses animais desde o seu nascimento, argumentam frigoríficos - a Minerva também está testando ferramenta para isso -, é fundamental para rastrear a cadeia produtiva como um todo e detectar se em algum momento da vida o bovino passou por áreas irregulares, o que poderia pôr a perder o esforço da indústria de carne em direção à sustentabilidade. Por "área irregular" entenda-se fazendas desmatadas ilegalmente, gado criado em áreas indígenas, embargadas pelo Ibama ou de conservação e propriedades que adotem trabalho análogo à escravidão. E obter os dados das GTAs, cedidos pelos pecuaristas, seria uma das formas de garantir esse rastreamento.
Entretanto, mesmo que a indústria garanta que a liberação das GTAs dos indiretos será feita de forma voluntária pelo produtor - e a JBS, por exemplo, aposta no engajamento da ponta produtiva neste sentido -, o temor é o de que, em regiões onde as empresas têm maior participação de mercado, a adesão em massa dos produtores pressione os outros a liberarem suas GTAs contra a vontade, por receio de ficarem fora do mercado, argumenta o presidente do Grupo Pecuária Brasil (GPB), Oswaldo Furlan. "Eu não vejo problema em as empresas terem acesso à GTA, isso é uma decisão que deve caber ao produtor. Já existe esse compromisso de não comprar animais que vieram de fazendas irregulares do ponto de vista ambiental. O que não queremos é invasão de privacidade e imposição", comentou ao Broadcast Agro.
A Guia de Trânsito Animal (GTA) é emitida para um lote de animais de mesma espécie, mesma origem, destino, finalidade e veículo transportador, sem informações individuais dos animais. Segundo o Ministério da Agricultura, a emissão é realizada mediante solicitação do produtor ou seu representante legal junto ao órgão estadual responsável pela saúde animal. O único requisito é o cumprimento das exigências ligadas à saúde animal estabelecidas para cada espécie, já que a GTA tem como finalidade o controle sanitário, e não ambiental. Em nota enviada ao Broadcast Agro, o ministério ressaltou que o governo não disponibiliza esses dados a terceiros, mas "o produtor pode fazê-lo sem qualquer problema, já que é uma informação dele mesmo e sobre a qual o governo não solicita sigilo".
Furlan reconhece que todas as iniciativas que vierem para agregar no controle ambiental e contribuir para melhorar a rentabilidade da produção e a transparência para os mercados interno e externo são bem-vindas. Contudo, o presidente do GPB chamou a atenção para o fato de as indústrias não terem escutado os pecuaristas antes dos lançamentos dos projetos. O próprio GPB, nascido nas redes sociais, congrega mais de 14 mil pecuaristas em 17 Estados. "Não somos mais aqueles produtores que não tinham voz ativa, eles precisam ver que somos antenados e precisamos ser convidados para dar opiniões e sugestões; ideal seria que tudo isso tivesse sido conversado antes."
No Pará, a primeira reação dos pecuaristas às propostas da indústria foi de resistência - principalmente quanto à JBS, que lançou na semana passada um grande programa chamado "Juntos pela Amazônia", que contempla, entre outros tópicos, a rastreabilidade dos fornecedores indiretos por meio da cessão voluntária das GTAs. Para o presidente da Associação de Criadores de Gado do Pará (Acripará), Maurício Fraga, porém, o primeiro passo para solucionar os problemas ambientais da cadeia produtiva de bovinos no Estado deveria ser implementar um projeto de regularização para os produtores, e só depois focar no rastreamento dos indiretos e na posterior exclusão dos irregulares. "A fiscalização é muito importante, mas primeiro os criadores precisam ter a oportunidade de se regularizar, para que depois as medidas restritivas sejam intensificadas. Quando começa o monitoramento, o processo natural é excluir pessoas que não conseguiram se legalizar ainda e jogá-las na clandestinidade", disse ele ao Broadcast Agro.
Em seu programa, a JBS mencionou na semana passada ao Broadcast Agro que se compromete a prestar assessoria jurídica para a regularização socioambiental de produtores. Além disso, citou que, a partir de 2025, quem não estiver em conformidade com as regras do seu programa deixará de ser fornecedor da indústria. Antes disso, a adesão será voluntária, até que a cadeia produtiva se adapte.
Fraga, da Acripará, joga luz também sobre a situação de pequenos produtores, que fazem atividade de cria de bezerros, e são os que concentram, na sua avaliação, um alto índice de irregularidades ambientais. Muitos deles, contudo, aguardam a validação do Cadastro Ambiental Rural (CAR), um documento declaratório que precisa ser chancelado pelo Ministério da Agricultura para a propriedade aderir ao Programa de Regularização Ambiental (PRA), a cargo dos Estados. "O que acontece é que o governo federal é extremamente ineficiente na validação dos CARs, ou seja, quem quer se regularizar não consegue e os poucos que conseguem demoram muitos anos."
Em relação ao uso da GTA para aplicar os métodos de mapeamento da cadeia, Fraga diz ser contra. Segundo ele, a GTA deve ser utilizada apenas para controle sanitário. "Quando você usa isso para fiscalizar problemas ambientais e fiscais, pode estimular produtores a omitirem ou trocarem informações nas suas GTAs, o que levaria a um problema sanitário enorme", disse. "A questão ambiental é grave, o desmatamento é crescente e tem que ser controlado, mas ainda não chegamos a uma medida eficaz e a questão da GTA não é tão simples assim."
O posicionamento de Fraga a respeito do uso da GTA é endossado pela diretora executiva da Associação de Criadores de Gado de Mato Grosso (Acrimat), Daniella Bueno. Ao Broadcast Agro, ela frisou que a entidade não corrobora com a liberação das GTAs de forma indiscriminada, mas se os produtores se sentirem confortáveis para, individual e voluntariamente, compartilharem essas informações com as empresas, não há como impedir. "É uma questão comercial, cabe às grandes indústrias conseguirem vender essa ideia e conseguir a adesão dos pecuaristas. A grande maioria, até o momento, defende que isso é dado exclusivo do produtor e não quer disponibilizar as GTAs."
Bueno questionou, ainda, se os projetos de rastreamento não deveriam entrar em vigor apenas após uma desburocratização e a solução de uma série de problemas fundiários, que atrapalham os pecuaristas na regularização ambiental. "O produtor pode estar fazendo tudo certinho, dentro da lei, mas enquanto o CAR dele não for validado, ele consta como irregular e ilegal", exemplifica.
Outro ponto que chama a atenção, segundo a diretora da Acrimat, é o discurso de desmatamento zero por parte das indústrias. Embora ela não considere necessário abrir mais áreas para a pecuária, ela lembra que o Código Florestal permite o desmatamento legalizado. "Pela lei, é um direito do produtor", reforça. No caso do bioma amazônico, por exemplo, o produtor rural deve manter 80% de área de floresta e pode explorar 20%. Nos cerrados, a proporção, a depender da localidade, é de 35% de área aberta para 65% de preservada e, no restante do País, 20% de área preservada e 80% de área explorada. "Nos últimos dez anos, aqui em Mato Grosso melhoramos a produtividade da utilização de pasto de 27 milhões de cabeças de gado em 25,3 milhões de hectares para 30 milhões de cabeças de gado em 24,2 milhões de hectares. Nós tentamos outras alternativas para não desmatar, mas se for necessário, que seja dentro da lei. Somos a favor do desmatamento ilegal zero, punindo os que estão fora da lei", completou.
O pecuarista e diretor da Niceplanet Geotecnologia, Jordan Timo Carvalho, lembrou que, pelo Compromisso da Pecuária assinado pelas empresas da cadeia em 2009 juntamente com a ONG Greenpeace, a responsabilidade de rastreamento é de quem adquire o animal - ou seja, da indústria. E, de fato, em relação aos fornecedores diretos de gado, os sistemas adotados pelas indústrias frigoríficas têm funcionado bem (Broadcast, 2/10/20)