29/01/2020

Diplomacia bolsonarista ameaça agronegócio, diz pesquisador de Harvard

Diplomacia bolsonarista ameaça agronegócio, diz pesquisador de Harvard

Legenda: O presidente Donald Trump ouve o assessor internacional da Presidência brasileira, Filipe Martins, que está à direita do deputado federal Eduardo Bolsonaro, do ministro Ernesto Araújo e do secretário de Governo americano, Mike Pompeo, na Casa Branca, em agosto de 2019

 

Por Diogo Schelp

A política externa do governo Jair Bolsonaro se transformou em uma plataforma ideológica que acaba prevalecendo sobre os interesses reais do Estado brasileiro. Essa é a avaliação do cientista político Hussein Kalout, pesquisador da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, e ex-titular da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) da Presidência da República, no governo Michel Temer.

Para Kalout, os danos causados pelo trio que comanda a política externa — formado pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro, pelo assessor especial da Presidência Filipe Martins e pelo chanceler Ernesto Araújo — só não são maiores porque o setor agropecuário brasileiro tem sido capaz de se opor e reagir às decisões mais prejudiciais, forçando recuos táticos da diplomacia.

A seguir, a entrevista em Kalout analisa esses e outros pontos da política externa bolsonarista:

No início de janeiro, o governo brasileiro manifestou apoio ao assassinato, cometido pelos Estados Unidos, de um general iraniano no Iraque. O que esse posicionamento representa para a política externa brasileira?

O Brasil não tem essa importância toda no mapa estratégico médio oriental. As posições brasileiras não são tão importantes para os verdadeiros jogadores daquele tabuleiro. Para o governo Bolsonaro, porém, o Brasil se posicionar daquela forma foi coerente com a sua opção de alinhamento incondicional e automático com os Estados Unidos. Esse posicionamento abre uma grave brecha por seu ineditismo. Foi o primeira apoio aberto do Brasil a uma operação militar para o uso da força sem estar amparado pelo direito internacional. Isso não é ser pró-A ou anti-B. É uma questão de princípio, porque se um dia algum país quiser usar isso contra a gente, não teremos argumentos para dizer: "O que se fez está à margem do direito internacional ou está desprovido de uma resolução na ONU." Não teremos moral. Abre um flanco.

Você pode dar um exemplo concreto?

Faço um paralelo com a votação na ONU, em novembro passado, sobre o embargo unilateral estabelecido pelos Estados Unidos contra Cuba. Apenas três países votaram pelo embargo: Estados Unidos, Israel e Brasil. Existe uma razão para a esmagadora maioria dos países votar contra: se você reconhece a extra-territorialidade de leis americanas, está obliterando o direito internacional. Você aceita que qualquer decisão feita por qualquer foro legislativo americano tem valor maior que leis internacionais. Se um dia os Estados Unidos, por exemplo, decidirem aplicar sanções contra o Brasil porque mudou o alinhamento ou porque estamos exportando mais para a China, teremos que reconhecer que elas têm legalidade internacional.

Quando os países votam contra o embargo americano, e isso inclui os principais aliados dos Estados Unidos na Europa, estão dizendo que o que vale são sanções aprovadas no Conselho de Segurança da ONU, não sanções unilaterais. Se não vira lei da selva, o mais forte se impõe. Não se pode reconhecer a legalidade disso.

Seja nos governos militares ou nos governos de esquerda ou de direita até agora, o Brasil nunca havia referendado sanções unilaterais. O governo Bolsonaro quebrou a nossa doutrina de política externa e dos pilares que sustentam essa doutrina: o princípio da não-intervenção, o princípio da autodeterminação dos povos e o direito internacional.

Por trás desse rompimento da doutrina de política externa há um acordo de alinhamento com os Estados Unidos ou trata-se de uma mudança de orientação puramente ideológica do governo Bolsonaro?

Os Estados Unidos têm uma doutrina muito clara em política externa: se o establishment americano quer construir uma relação sólida com um país e não está preocupado apenas em tirar vantagens táticas, desde o início ele demonstra que essa parceria tem uma dimensão diferente; que o país com o qual se quer construir essa relação está na primeira página da diplomacia americana. Se você fizer uma análise desde o início do governo Bolsonaro até agora, fica claro que o Brasil não está na primeira página. Em vez disso, os Estados Unidos estão extraindo vantagens táticas pontuais do Brasil.

Por isso, não acredito na primeira hipótese, de que por trás disso existe alguma negociação sofisticada. Os formuladores da nossa política externa são muito pouco sofisticados. A política externa brasileira se transformou em uma plataforma para nutrir a base eleitoral e nela fazer ressonar as mudanças que ela deseja ver. O que anima a base? É se voltar contra Cuba, a favor das sanções americanas? Se isso tem ressonância, acaba prevalecendo sobre os interesses reais do Estado brasileiro.

O governo age como se precisasse converter essas ações em votos. As ações da política externa que a gente vê são anódinas aos cânones da nossa doutrina. Ela tem por objetivo ser "monetizada" em votos, em apoio popular. Trata-se, portanto, de uma missão ideológica, de olho na política doméstica.

Quais são os exemplos recentes dessa postura?

Um exemplo é o processo de acessão do Brasil à ODCE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), iniciado no governo Michel Temer. Como secretário (de Assuntos Estratégicos) de Temer, eu trabalhei nesse processo. Estudamos os riscos e entendemos que era um processo longo, mas que valia a pena iniciá-lo. O Brasil precisa adaptar-se a várias normas, muitas das quais já foram internalizadas.

O apoio dos Estados Unidos é importante, assim como o dos demais países que compõem a organização. A decisão é por consenso. Não adianta os americanos apoiarem a entrada do Brasil, mas a França e a Alemanha se colocarem contra. O Brasil precisa buscar o apoio de todos.

É claro que a maior potência econômica do mundo tem um peso maior. Especialmente porque ela pode estar contra o processo de expansão. É um apoio relevante. Mas criou-se uma artificialidade para vender caro esse apoio ao Brasil.

O fato de os Estados Unidos agora terem oficializado o apoio à acessão brasileira não é uma grande concessão. Trata-se de uma manifestação de apoio político ao Estado brasileiro que vinha antes do Bolsonaro.

A tentativa de Bolsonaro de se alinhar a Trump não pode estar relacionada a uma necessidade do presidente brasileiro de não ficar isolado em algumas questões de relevância internacional, como o aquecimento global? 

O Brasil conseguiu se isolar nos principais temas globais, algo que os Estados Unidos não fizeram.

O problema é que a política externa do governo Bolsonaro carece de uma visão estratégica e de uma boa dose de pragmatismo. Se um governante tem uma visão sobre meio ambiente diferente da maioria das nações e está à frente de um país com papel de liderança nessa área, deveria se sentar à mesa, comandar a discussão e tentar provar que sua plataforma de política ambiental é coerente, baseada em evidências empíricas, científicas. Ele teria que tentar mostrar que a narrativa que prevalece é anacrônica e paradoxal.

No sentido oposto, à medida que o governo se recusa se sentar à mesa ou desafia a ciência e o consenso coletivo para sabotar os esforços internacionais, passa a se isolar. O país deixa de ser um ator para se tornar um pária nesse processo. Essa foi a postura do Brasil na COP-25 (Conferência das Partes da Convenção Quadro das Nações Unidas para Mudanças Climáticas), em Madri, no ano passado. Se o governo Bolsonaro queria provar que sua política ambiental está correta, tinha que ter aceitado sediar a COP25 no Brasil e ter apresentado a sua visão sobre isso. Ali era o espaço para fazer isso. Você é o dono da casa, está jogando em casa e tem as melhores condições para apresentar os seus argumentos.

De que forma a decisão de não sediar a COP25 se insere na predominância ideológica da política externa bolsonarista?

O argumento era que não se deveria gastar dinheiro com um evento globalista. Por outro lado, o governo decidiu organizar a conferência "Paz e Segurança no Oriente Médio" (a ser sediada em Brasília nos dias 5 e 6 de fevereiro).

O que é mais importante, sediar um evento mundial sobre mudanças climáticas, um tema no qual o país é uma peça central, ou uma conferência sobre segurança no Oriente Médio, em que o Brasil é um ator irrelevante?

A resposta é óbvia, mas a prioridade do governo foi organizar um evento sem qualquer relevância para o posicionamento estratégico do Brasil.

Talvez o tema tenha ressonância para a plataforma política do presidente. Mas isso comprova mais uma vez que ele está mais preocupado em fidelizar uma franja do eleitorado do que verdadeiramente em defender os interesses estratégicos do Estado brasileiro no médio e no longo prazo. Esse é o fato.

Em alguns casos específicos, porém, o governo voltou atrás em posturas adotadas na política externa. Esse é o caso da transferência da embaixada de Tel Aviv para Jerusalém, que acabou não ocorrendo, e da retórica agressiva em relação à China, que se amenizou. Por quê?

A política externa desse governo é ambivalente, metralha o próprio pé. Se não tivéssemos a ala mais pragmática do governo, o setor agrícola e alguns interesses empresariais se posicionando contra a política externa, o dano seria muito maior. Uma hora a realidade bate à porta. E aí tem o interesse real das pessoas: o emprego, a renda e o crédito.

A nossa participação no comércio internacional é muito pequena, em termos nominais. O comércio exterior representa quase um terço do PIB brasileiro. Disso, o setor agrícola detém 60% da pauta comercial brasileira. Muitos dos recuos na política externa ocorreram graças à pressão do setor agrícola.

O episódio da nota do Itamaraty em apoio ao assassinato de um general iraniano em um bombardeio americano é um exemplo disso. No dia seguinte, o governo tratou de dizer que queria manter a relação comercial com Irã. Afinal, em matéria agrícola, o Irã é o nosso quinto maior parceiro brasileiro, com um superávit avassalador em favor do Brasil.

A mercado agropecuário é altamente competitivo e baseado em confiança. Se você perde espaço, não recupera tão fácil. E quem são os nossos principais concorrentes? Europa e EUA. Se o governo brasileiro começa a abrir lacunas no mercado por  questões ideológicas, vai acabar destruindo o nosso setor do agrobusiness, que é o mais desenvolvido do mundo. Vai abrir mão de mercados, vai impactar no PIB e vai reduzir as exportações, a renda, o crédito e o emprego.

A frente parlamentar da agricultura já se posicionou claramente contra Bolsonaro e já o criticou no Congresso e em eventos da CNA (Confederação Nacional da Agricultura). Os representantes desse setor viram que está havendo um desgaste. Não se tem uma noção real ainda de até onde isso vai. O governo não encontrou o equilíbrio entre a política externa que pretende implementar e a capacidade agrícola do Estado brasileiro.

A verdade é que não vão achar, porque as posições ideológicas são totalmente contraproducentes para os interesses nacionais.

As negociações comerciais entre China e Estados Unidos podem acelerar esse desencantamento do setor agrícola com a política externa de Bolsonaro?

No acordo assinado entre China e Estados Unidos, os chineses basicamente se comprometem a comprar dos americanos os principais produtos que concorrem com a nossa produção. O acordo em si é uma bomba sobre o setor de agrobusiness brasileiro. Quando os Estados Unidos avançam num acordo assim estão pouco preocupados com o alinhamento do Brasil e com o amor platônico de Bolsonaro por Trump.

Como se explica, do ponto de vista do processo decisório da política externa brasileira, o fato de o governo se mostrar tão reativo em muitos desses episódios?

Hoje temos um trio que governa a política externa. O chanceler Ernesto Araújo é a ponta mais fraca. Ou você acha que ele tem independência e capacidade de contrariar Eduardo Bolsonaro (deputado federal e filho do presidente) ou Filipe Martins (assessor para assuntos internacionais da presidência)? Araújo foi nomeado para o cargo por essas pessoas, deve a lealdade a elas. Sem esses dois, ele jamais chegaria ao patamar de chanceler.

Araújo está ali mais para agradar e fazer com que a percepção dessas pessoas se encaixem dentro de uma lógica do que para dizer a verdade. Nesse triunvirato, apesar do treinamento como diplomata, ele é a ponta mais fraca. Quanto aos outros dois, não têm sofisticação e conhecimento profundo de política externa brasileira e de relações internacionais.

Basta ver o currículo deles. Basta ver a trajetória deles nessa área. É como chamar um médico inexperiente para fazer uma cirurgia complexa (Assessirua de Comunicação, 28/1/20)