Edição genética e dados podem entregar mais comida e mais sustentabilidade
Edição genética de alimentos - Foto Blog my Farm
Por Juergen Eckhardt
Desafio da humanidade de produzir mais comida com menos terras está nas mãos dos produtores rurais – e a ciência já oferece respostas sobre o caminho a ser trilhado
A conta é de 3,5 bilhões de pessoas. Esse é o número de indivíduos vivos, hoje, graças a uma inovação que muitos provavelmente nunca ouviram falar: o processo de Haber-Bosch.
Inventado no início do século 20, os químicos Fritz Haber e Carl Bosch descobriram como transformar o nitrogênio atmosférico em amônia de forma econômica, um composto rico em nitrogênio que as plantas podem usar para crescer, desbloqueando uma nova e poderosa forma de ajudar as safras agrícolas a atingirem seu potencial máximo de rendimento.
O profundo impacto dessa tecnologia não pode ser subestimado. No ano de 1900, as fazendas exigiam quase quatro vezes mais terra do que no ano 2000 para obter a mesma média de rendimento das culturas. Ao longo das últimas décadas, essa fantástica melhoria na eficiência, como ilustrado abaixo, é considerada um dos maiores avanços da era moderna.
Mas há um porém. O processo de Haber-Bosch requer grandes quantidades de energia e o seu produto, o fertilizante nitrogenado sintético, é conhecido pelos seus efeitos poluentes nas águas e pelas suas emissões de gases de efeito estufa. De acordo com algumas estimativas, a agricultura é responsável por 25% dos gases de efeito estufa do mundo, e o processo de Haber-Bosch sozinho contribui com 3% dessas emissões.
Como a agricultura familiar gaúcha está segurando uma geração no campo
A mudança climática está reduzindo as terras aráveis no mundo e ameaçando o sustento de muitos agricultores, ao passo que a população global em crescimento está prevista para atingir 10 bilhões de pessoas até 2050. Quando se coloca tudo isso junto, parece uma tarefa impossível: como os agricultores conseguirão produzir mais alimentos com menos terras, reduzindo sua dependência do status quo, ao mesmo tempo em que enfrentam mais secas, ondas de calor e enchentes?
A boa notícia é que, com as mais recentes ferramentas tecnológicas à disposição, outra transformação na agricultura está começando silenciosamente. Confira três motivos pelos quais a agricultura poderá mudar nas próximas décadas.
Novas e melhoradas culturas
O uso da edição genética na agricultura se tornará cada vez mais prevalente devido à sua rapidez e especificidade no desenvolvimento de características desejáveis nas culturas. Em vez de usar um gene de uma espécie diferente – como o de uma bactéria inserida no milho para protegê-lo de uma praga comum – os biólogos agora podem modificar diretamente o DNA da própria cultura, silenciando ou ajustando certos genes para criar versões da cultura que sejam mais resistentes ao calor, às pragas, com melhor sabor ou tolerantes à seca, por exemplo.
A seleção tradicional de culturas leva cerca de uma década, mas com novas ferramentas biotecnológicas, aprimoradas por tecnologias digitais em rápida evolução, como a inteligência artificial, o prazo de desenvolvimento pode ser reduzido para apenas alguns meses.
“O CRISPR-Cas9 é algo que realmente mudou a forma como os biólogos vegetais têm abordado a engenharia de culturas, porque agora é possível fazer coisas que eram essencialmente impossíveis anteriormente ou muito difíceis”, diz Robert Jinkerson, professor assistente no Departamento de Botânica e Ciências Vegetais da Universidade da Califórnia, em Riverside. “Portanto, os prazos para criar novas características ou novas variedades estão diminuindo rapidamente, o que nos permite pensar e combinar novas características conhecidas de outras variedades em outras mais relevantes comercialmente”.
Os Estados Unidos e o Brasil têm um ambiente regulatório relativamente favorável para incentivar esse tipo de inovação, e a União Europeia, em uma reversão bem-vinda, acaba de anunciar que relaxará suas rígidas regras sobre culturas editadas geneticamente, reconhecendo o fato de que ajustes diretos no genoma das plantas poderiam ter ocorrido por meio do melhoramento convencional de culturas.
Enquanto muitos biólogos estão experimentando maneiras de melhorar as culturas por meio da edição de genes, Jinkerson está trabalhando em um projeto particularmente futurista: desvincular o crescimento das plantas e a produção de alimentos da própria fotossíntese. Por quê? Porque, segundo Jinkerson, as plantas são muito ineficientes na conversão da luz solar em biomassa vegetal: em outras palavras, no crescimento. Uma cultura como o arroz só pode converter 1% de sua energia solar em biomassa. O milho ou a cana-de-açúcar convertem cerca de 1,5%. Em contraste, um painel solar tem uma eficiência de 22%, mas isso só gera eletricidade, que não podemos comer.
O laboratório de Jinkerson, financiado pela NASA, está desenvolvendo uma nova abordagem usando a fotossíntese artificial para produzir alimentos. Um painel solar captura a luz solar e a converte em eletricidade para uso em um processo chamado eletrólise de CO2. Esse processo pega o CO2 e o transforma em compostos como o acetato, que os cientistas então alimentam em ambiente escuro os organismos produtores de alimentos. Eles já demonstraram que a abordagem funciona para cultivar leveduras, algas e cogumelos, e agora estão trabalhando em plantas.
No entanto, as plantas não evoluíram para crescer sem luz, então seu laboratório está usando a engenharia genômica para tentar fazer com que as plantas cresçam de forma mais eficiente no escuro. Além das aplicações imediatas para viagens espaciais, essa abordagem permitiria o cultivo de mais alimentos em menores áreas de plantio.
“Seria essencialmente a próxima versão da agricultura vertical”, ele diz, explicando que, em teoria, seria possível produzir mais alimentos com a fotossíntese artificial em ambientes internos do que confiando nos processos ineficientes das plantas que crescem ao ar livre sob o sol. “Fizemos o cálculo para uma área de terra em Illinois. Se você tivesse algo próximo de meio hectare poderia plantar milho lá ou colocar painéis solares e cultivar oito vezes mais alimentos.”
Ele continua: “Idealmente, com nossa abordagem, poderíamos devolver terras agrícolas para a natureza aumentando essa eficiência. Então, poderíamos pegar um quarto das terras que estão sendo usadas atualmente, colocar painéis solares lá e produzir alimentos, e pegar os outros três quartos das terras e transformá-las novamente em florestas ou pradarias.”
Agricultura irá ajudar, e não prejudicar, o meio ambiente
Joanne Chory é outra cientista da área vegetal influente que trabalha no desenvolvimento de culturas inovadoras. Como diretora do Laboratório de Biologia Molecular e Celular de Plantas, no Instituto Salk de Ciências Biológicas, na Califórnia, Chory está focada na engenharia de plantas para serem mais resilientes aos tipos de choques ambientais que, segundo ela, como ser ainda mais comuns no futuro, como chuvas, inundações e incêndios.
O contexto de seu trabalho é que, no Hemisfério Norte, a maioria das safras cultivadas termina no final da estação e “todo o trabalho que fizeram para fixar o CO2 em massa biossintética acabou, porque tudo é liberado novamente na atmosfera.” Armazenar carbono no solo, no entanto, é importante para reduzir a instabilidade climática.
Em vez de deixar a natureza seguir seu curso, Chory enxerga uma oportunidade de usar a edição genética para fazer com que as plantas produzam suberina em grande quantidade em suas raízes, que é um polímero natural, atuando como um selante. “Se você produzir mais suberina”, explica ela, “terá mais carbono recalcitrante que não consegue ser decomposto por micróbios”. Assim, mais carbono da planta tem o potencial de acabar na biomassa das raízes ou no solo, ao final da temporada, e pode permanecer armazenado por vários anos se o agricultor estiver praticando o plantio direto.
Chory também reitera que a produção em grande quantidade de suberina teria um efeito positivo nas plantas, permitindo que elas resistam melhor a inundações e secas. Seu laboratório está trabalhando na engenharia das principais culturas básicas, como milho, trigo e arroz, para possuírem essa característica. Ela estima que metade das terras aráveis do mundo – entre 500 e 800 milhões de hectares – precisaria ser replantada com esse tipo de cultura para armazenar carbono suficiente e atingir o saldo zero de emissões.
“A agricultura está contribuindo para o problema das emissões de gases de efeito estufa”, diz ela, “mas a agricultura também pode contribuir para a redução do carbono que já está na atmosfera… porque as plantas são muito eficientes em absorver CO2. Não precisamos fazer a captura direta de CO2 no mundo da biologia vegetal, porque acreditamos que as plantas fazem isso melhor mesmo, de forma mais barata e podem se beneficiar da escalabilidade da agricultura.”
Até que as culturas de sequestro de carbono sejam amplamente adotadas, já temos os meios disponíveis hoje para aproveitar a escalabilidade da agricultura destinada a reduzir o carbono. Uma forma é aplicar microrganismos no solo durante o processo normal de plantio de culturas, que transformam o dióxido de carbono em minerais permanentes.
Avançar para o uso de produtos e processos biológicos, em vez de químicos, é o caminho do futuro. A fixação de nitrogênio é outra busca importante nesse sentido. Certas culturas, como leguminosas, desenvolveram uma relação simbiótica com certos microrganismos que vivem em nódulos em suas raízes.
Esses microrganismos adquiriram a capacidade de captar o nitrogênio da atmosfera (que compõe 78% do ar) e fornecê-lo às plantas para o crescimento, como um fertilizante totalmente natural. No entanto, algumas de nossas culturas mais importantes não evoluíram com essa interação especial de microrganismos. Portanto, elas dependem muito dos fertilizantes sintéticos de nitrogênio para obter rendimentos suficientes.
Mas, e se pudéssemos descobrir o conjunto de instruções químicas nos microrganismos das leguminosas que lhes permite fixar nitrogênio do ar e colocar essas instruções em microrganismos que já vivem no milho, arroz ou trigo? Teoricamente, então seríamos capazes de usar organismos para fazer o trabalho necessário, em vez de produtos químicos que emitem gases de efeito estufa.
Até agora, os resultados iniciais desses testes de campo não têm sido satisfatórios, mas o caminho para um novo paradigma raramente é linear. Por isso, é de se prever que as descobertas necessárias para realizar essa visão serão concretizadas.
As fazendas irão produzir tanto alimentos quanto dados
Mais próximo dos dias atuais, a adaptação das tecnologias digitais para auxiliar a agricultura já está em pleno andamento. Em vez de pulverizar todo o campo com pesticidas, por exemplo, os agricultores estão começando a depender de drones, sensores e dados de laboratório para orientá-los na aplicação de produtos de proteção de cultivos. Isso lhes permitirá ser mais criteriosos em suas práticas, além de limitar os efeitos ambientais da pulverização.
Compreender a saúde do solo é outra área que está sendo transformada pela tecnologia. Atualmente, a única maneira precisa de avaliar os nutrientes do solo é coletar uma amostra, enviá-la para um laboratório e aguardar o relatório – um processo que pode levar de alguns dias a vários meses. Além disso, não é viável em termos de custo fazer isso com muita frequência em um campo extenso. Essas questões são obstáculos para a tomada de decisões precisas sobre quando e onde usar fertilizantes. Algumas partes de um campo podem exigir mais nitrogênio, por exemplo, enquanto outras partes precisam de mais fósforo – e a única maneira de saber disso é realizar múltiplas amostragens de solo ao longo do tempo.
A ChrysaLabs, uma startup sediada em Montreal, no Canadá, desenvolveu um “lab-on-a-stick” (“laboratório em um bastão”, em português) para gerar dados do solo em tempo real, incluindo informações sobre nutrientes e carbono, a um custo mais baixo do que a amostragem tradicional do solo. Já está sendo utilizado em mais de 800 mil hectares nos Estados Unidos e Canadá. (A Leaps investiu na ChrysaLabs.)
Créditos de carbono são outra forma pela qual os agricultores monetizarão cada vez mais suas terras, adotando práticas ou produtos que sequestram carbono e vendendo esses créditos para organizações que desejam compensar sua emissão de carbono. No entanto, o mercado de créditos de carbono tem enfrentado problemas, incluindo acusações de fraude. Uma forma precisa de medir cientificamente o carbono é muito necessária.
Guillaume Breton-Menard, diretor de operações da ChrysaLabs, observa que alguns proprietários de terras nos EUA esperaram um ano e meio para obter seus níveis de carbono analisados por um laboratório. Segundo ele, sua sonda de solo faz isso em 20 segundos.
“Se houver uma ONG ou alguém no futuro que queira analisar seus cálculos, você pode correr o risco de perceber que sua quantificação não foi suficientemente sólida”, diz ele. “Portanto, queremos trazer ao mercado uma metodologia mais robusta que reduza o risco reputacional.”
Com culturas mais resistentes e melhores dados, além de práticas mais vantajosas, tudo se encaminha para que a fazenda do futuro seja um sistema eficiente e integrado que beneficia tanto os produtores, os consumidores quanto o planeta. De fato, será uma conquista extraordinária (Juergen Eckhardt é colaborador na Forbes EUA, vice-presidente sênior e diretor da Leaps by Bayer, unidade com foco em inovações e soluções de biotecnologia relacionadas a saúde e agricultura; tradução João Pedro Isola; Forbes, 12/7/23)