Em busca da segurança alimentar global
FOME - Foto Blog Brasil Escola
Por Paulo Nussenzveig, pró-reitor de Pesquisa e Inovação da USP, e Raúl González Lima, pró-reitor adjunto
Atualmente, 828 milhões pessoas estão em situação de desnutrição no mundo.
Dentre os grandes desafios enfrentados pela humanidade, um dos que mais mobilizam nossos corações e mentes é a dificuldade de prover segurança alimentar para todas as pessoas. Atualmente, existem 828 milhões pessoas em situação de desnutrição e 345 milhões pessoas em situação de insegurança alimentar aguda no mundo.
Em pleno ano de 2023, para essas pessoas (mais de 10% da população global), o direito humano básico a uma alimentação adequada é negado diariamente, segundo a organização Concern Worldwide, uma das responsáveis pelo Índice Global da Fome (Global Hunger Index, GHI). A Food and Agriculture Organization (FAO), da ONU, estima que a produção de alimentos precisa aumentar em aproximadamente 50% até 2050 para satisfazer uma população que deve chegar a 10 bilhões de seres humanos. A crise climática torna essa missão ainda mais desafiadora pois precisamos produzir mais ao mesmo tempo em que reduzimos os danos ao meio ambiente.
O Brasil, o quarto maior produtor de alimentos em 2023, tem papel de destaque nesse desafio. Seguidos relatórios da FAO e de outras organizações identificam no Brasil um dos maiores potenciais de expansão da produção de alimentos. Um estudo da consultoria PWC indica que o nosso país poderia responder, sozinho, por 40% do incremento necessário.
Possuímos condições muito especiais, em termos de clima, disponibilidade de terras (sem necessidade de desmatamento) e recursos hídricos, matriz energética limpa, entre outros. Diferentes estratégias precisarão ser empregadas para atingirmos esses objetivos. Mas é inescapável que todas passem por conhecimento científico, através de pesquisa intensiva, e por inovações, tanto tecnológicas quanto sociais. Devemos nos orgulhar de nosso impressionante histórico de ciência, tecnologia e inovações no setor agroalimentar.
A tecnologia da agricultura brasileira aponta para um aumento de produtividade por metro quadrado, na medida em que avançam o conhecimento genético, da microbiota, do cultivo integrado. De acordo com o professor Marcos Buckeridge, do Instituto de Biocências da USP, o metro quadrado de floresta fixa 10 vezes mais carbono que o cultivo em monocultura.
Do ponto de vista de emissões de gases de efeito estufa, é muito mais vantajoso preservar e ampliar área de florestas. A própria agricultura, que representa 40% das emissões de gases de efeito estufa no Brasil, pode transformar-se, com a tecnologia já existente, em processo que captura dióxido de carbono mediante cuidados de manejo e cultivo integrado, segundo o professor. Carlos Eduardo Cerri, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da USP.
Outro fator que deve tornar nossa agricultura cada vez mais sustentável é o desenvolvimento crescente do controle biológico de pragas e a agricultura digital, o Agro 4.0. A menor superposição de aplicação de herbicidas e a decisão parcimoniosa de onde colocá-los foram viabilizadas pela inteligência artificial, pela digitalização e pela melhoria crescente da comunicação digital no campo. Temos tratores sem motoristas, com navegação auxiliada por GPS, visão computacional e internet.
Parte da expansão da nossa atividade agrícola pode-se dar a partir da recuperação de áreas degradadas. A área degradada que pode ser recuperada é do tamanho de um país como a França, segundo João Moreira Salles, no livro "Arrabalde". O conhecimento para a recuperação de áreas degradadas tem avançado, conferindo ao nosso país a liderança tecnológica em vários aspectos da agricultura tropical.
Dentre as inovações sociais, devemos esperar também um aumento de cursos que apoiem os pequenos e médios agricultores. Estima-se que basta a presença de assistência técnica nas pequenas e médias propriedades para duplicar seu rendimento. Os 4,6 milhões de pequenos produtores, e outras empresas de fora da porteira, têm muito a se beneficiar pela oferta no Brasil de um certificado de sustentabilidade que, com a ajuda da digitalização, possa ampliar mercados exigentes do ponto de vista da sustentabilidade.
Em parceria com a Embrapa e a Confederação Nacional da Agricultura, a USP está diretamente envolvida na concepção e validação de um tal certificado. Contatos com os governos estadual e federal mostram-se extremamente promissores para que o projeto seja amalgamado a outras iniciativas governamentais. A criatividade para apoiar agricultores familiares não é exclusividade nossa e podemos nos inspirar em exemplos de outros países.
No Nepal, por exemplo, existe um aplicativo de celular para agilizar a tomada de crédito por pequenos agricultores e as cooperativas têm tido elevado sucesso na incorporação de novas tecnologias, demonstrando que inovações sociais são e serão necessárias.
Como diz o ditado, "guerra avisada não mata soldado". O acesso a alimentos é desafio no qual o Brasil tem diversas características que tornam o país crucial para avançarmos: tem terras, tem ecossistema de inovação forte, empresas, governo e academia. Há lacunas também: faltam semicondutores, certificação de sustentabilidade da cadeia dos produtos, assistência técnica, empreendedores, pesquisadores e profissionais da assistência técnica. Uma análise multivariada, com métrica que valorize conhecimentos essenciais e estratégicos, que minimize os riscos da quebra de cadeias de insumos como, por exemplo, fertilizantes e que aumente a comunicação com as pequenas propriedades faz-se oportuna.
Além das vantagens econômicas e da prosperidade social que a expansão da produção agroalimentar promete trazer para nosso povo, temos uma responsabilidade para com o planeta, de prover as condições sustentáveis para que todas as pessoas tenham segurança alimentar (Folha, 11/11/23)