Em busca de justiça no caso do Grupo Abril
Legenda: Logotipo da editora Abril em prédio da empresa na marginal do Tietê
Por Eliana Sanches e Patrícia Zaidan
Há exatos cinco meses, o Grupo Abril demitiu 804 funcionários. Cortes ocorriam com frequência desde 2015. O inesperado foi a dispensa em massa de jornalistas, gráficos, administrativos e distribuidores sem negociação, plano de demissão voluntária ou qualquer benefício. Era o desfecho de uma série de erros estratégicos e contratações de executivos inábeis para o negócio do jornalismo que tomaram a empresa após a morte de Roberto Civita, em 2013.
Às vésperas de 6 de agosto, discutia-se no afogadilho quantas publicações fechar (foram 11). Voraz, o corporativo pedia para que se engordasse a lista de demissões, enquanto o RH garantia que um aporte dos irmãos Civita, controladores do Grupo, honraria os pagamentos.
No entanto, um dia antes do prazo legal para quitar as rescisões, a consultoria Alvarez & Marsal, que assumira a direção da empresa, pediu a recuperação judicial (RJ), jogando para baixo de seu tapete nossos direitos e os dos demitidos anteriormente, que recebiam a rescisão de forma parcelada. O calote atingiu ainda 250 freelancers.
A editora declarou uma dívida de R$ 1,6 bilhão. O débito mais pesado se refere a três grandes bancos; o devido aos trabalhadores não chega a R$ 85 milhões. Apesar de os advogados da empresa tratarem a situação como mera normalidade jurídica, nós perdemos aviso prévio, férias, 13º salário, multa sobre o FGTS e multa prevista na CLT por não pagarem em dia. Direitos solapados pela família Civita, uma das mais ricas do país.
A proposta que a empresa levará à assembleia de credores é vil --e tem nossa recusa antecipada. Em alguns casos, pagaria só 8% do total e ao longo de 18 anos, afetando especialmente os que têm acima de 250 salários mínimos a receber.
Com essa jogada, a Abril roubou de muitos de nós a chance de sobreviver com dignidade. Como o gráfico que lava banheiros em bar para não perder a casa financiada; o jornalista que foi parar na UTI com úlceras perfuradas sob o estresse da demissão após 40 anos na casa; a funcionária que, sem plano de saúde, teve cancelada a cirurgia da filha adolescente e, com a caçula na cadeira de rodas, conta com a ajuda da igreja para ter o que comer.
Ao vender a Abril por R$ 100 mil para o advogado Fábio Carvalho, os Civitas pretendem se livrar do negócio que desprezam, afastar-se dos dramas que causaram e ampliar a blindagem do patrimônio pessoal. Na RJ, diferentemente da falência, acionistas declaram bens sem que sejam necessariamente investigados.
Seguiremos exigindo o pagamento integral da dívida trabalhista --campanha que manteremos junto ao novo acionista, caso o Conselho Administrativo de Defesa Econômica aprove a transação. E proporemos ao Congresso Nacional alterar a lei de RJ, que fecha os olhos para o que descobrimos na prática: ela inclui o trabalhador em uma briga alheia.
De um lado, a devedora; do outro, grandes fornecedores e bancos. Espremidos no meio, empregados e freelancers veem virar créditos o que é suor e verba alimentar. É importante dar proteção judicial à empresa em crise para que se reerga, cumpra seu papel social e contribua com a economia do país. Mas a lei não deve premiar o mau empresário. Nem incluir verbas rescisórias no processo. Só assim tiraria trabalhadores de um lugar que lhes é imposto, mas a que não pertencem: um lugar onde a justiça e a dignidade se tornam conceitos cruelmente voláteis. (Eliana Sanches e Patrícia Zaidan, ex-jornalistas de algumas das maiores revistas da Editora Abril e demitidas em agosto de 2018; Folha de S.Paulo, 6/1/19)