Enfim, a reforma tributária - Editorial Estadão
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Aprovou-se a reforma possível, o que já é muita coisa. O pior cenário seria sua rejeição, cedendo à oposição raivosa e desperdiçando uma rara sintonia em torno de tema tão complexo.
Em um feito histórico, a Câmara dos Deputados finalmente aprovou uma proposta de reforma tributária digna de ser chamada de reforma. Em dois turnos de votação, nos quais o projeto teve mais de 370 votos, muito acima dos 308 necessários, os parlamentares deram o primeiro passo para dar fim ao manicômio tributário que vigora há anos no País. Foram 35 anos de espera até que fosse possível chegar ao consenso para unificar tributos federais, estaduais e municipais sobre consumo – consenso construído a partir do colapso do modelo anterior, e não do apoio cego a um novo sistema.
Ao longo desse período, temendo perder arrecadação, Estados mais ricos boicotaram todas as tentativas de mudar a incidência do tributo da origem para o destino, alimentando uma guerra fiscal que drenou as receitas de todos os entes federativos, inclusive dos que guerreavam. Durante todos esses anos, a União se recusou a contribuir financeiramente com fundos que dessem fim a esse jogo de soma zero. E, em meio a esse impasse, setores se aproveitaram das turbulências políticas para arrancar – ora do Executivo, ora do Congresso – subsídios e regimes especiais que garantissem sua sobrevivência.
Todos esses atores se colocavam a favor de uma reforma tributária. Cada um deles, no entanto, tinha uma ideia diferente sobre o que seria a proposta ideal. Na falta de acordo, a carga tributária subiu exponencialmente, especialmente sobre o consumo, tornando o sistema ainda mais regressivo e injusto para os mais pobres.
Quando se aprova uma reforma tão difícil de ser aceita, é importante reconhecer os acertos políticos da trajetória para saber replicá-los no futuro. O principal é que a reforma tributária foi apresentada como um tema de Estado, em contraposição a um tema de governo, conceito que expressa mais que um mero discurso político. Prova disso é que a proposta aprovada não foi um projeto de autoria do governo Lula da Silva, mas um parecer que combinou textos que já tramitavam no Legislativo havia anos, inspirados em um modelo liberal consagrado e aplicado em 174 países – o Imposto sobre Valor Agregado (IVA).
Mesmo assim, a resistência foi feroz. Setores produtivos, governadores e prefeitos rumaram a Brasília para defender seus interesses e negociar alterações no texto. É assim que funciona numa democracia: todos tentam proteger seus interesses, mas, na negociação, todos cedem algo para que o país ganhe. Nesse sentido, Lula foi muito feliz ao declarar que nem ele nem o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, eram “senhores da razão” e que aceitariam a reforma avalizada pelo Congresso. “Não é o que cada um de vocês deseja, não é o que o Haddad deseja, não é o que eu desejo, mas tudo bem”, disse.
Dadas as circunstâncias, o saldo final foi positivo, especialmente para os Estados. A reforma não retirou a autonomia dos governadores – antes, fortaleceu a Federação. Os benefícios fiscais já concedidos foram mantidos, em respeito à segurança jurídica. Estados que quiserem atrair empresas com incentivos poderão fazê-lo, mas a partir de recursos próprios dispostos em seus próprios orçamentos, o que requer responsabilidade e transparência, como determina a Constituição. O Conselho Federativo, órgão que fará a arrecadação e distribuição dos tributos, será uma oportunidade de reorganizar forças entre Estados e municípios sem interferência da União, que não terá assento.
Muitos setores escaparam da alíquota única e garantiram tratamento especial; outros ainda têm chance de conseguir o mesmo benefício quando o texto chegar ao Senado. Vários temas terão de ser regulamentados por projetos de lei complementar, e ainda será preciso avançar nas outras etapas da reforma, especialmente o capítulo sobre renda.
Aprovou-se a reforma possível, o que já é muita coisa. O pior cenário seria a simples rejeição da proposta, desperdiçando uma rara janela de oportunidades que uniu Executivo e Legislativo, com exceção da oposição raivosa. O País venceu uma etapa que parecia intransponível, e venceu-a por meio da política, tão demonizada nos anos recentes. Eis o único caminho possível para superar divergências e vencer desafios históricos (Estadão, 8/7/23)