Fábrica de sorvete, mercearia de bairro e locadora vencem leilão de arroz
BANDEIRA DO BRASIL - Imagem Reprodução -Blog Carlos Romero
A mercearia Queijo Minas, em Macapá (AP) contrato de R$ 736 milhões com o governo federal. Foto Google Maps Reprodução
Firmas sem afinidade com a importação de arroz venceram leilão para vender 263 mil toneladas de arroz à Conab; estatal diz que empresas serão multadas se não depositarem garantia até quinta, 13.
Uma fabricante de sorvetes, uma mercearia de bairro especializada em queijo e uma locadora de veículos estão entre as vencedoras do leilão promovido pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para a compra de 263 mil toneladas de arroz. Concluído nesta quinta-feira (06), o certame foi realizado pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) para a importação de 263,37 mil toneladas do grão, ao preço de R$ 1,31 bilhão. Procurada, a Conab disse que não conhece, durante o leilão, quais são as empresas participantes e que os nomes delas só aparecem depois de fechada a operação.
O objetivo do governo é conter o aumento de preços do arroz – cultura realizada principalmente no Rio Grande do Sul e atingida pelas inundações que castigaram o Estado no mês passado. Os produtores e beneficiadores de arroz questionam a iniciativa, alegando que há oferta de arroz no mercado brasileiro e que o governo fará uma intervenção em toda a cadeia, uma vez que além da importação fará a venda do arroz com marca própria nos supermercados.
Das quatro empresas vencedoras do leilão de ontem, apenas uma – a Zafira Trading – é uma empresa do ramo. A empresa atua no comércio exterior desde 2010 e ganhou o direito de vender 73,8 mil toneladas de arroz, a R$ 368,9 milhões – o montante corresponde a 28% do total negociado no leilão. O Tribunal de Contas da União (TCU) foi acionado pelo partido Novo para apurar e suspender o resultado do leilão.
A maior fatia foi arrematada por uma mercearia de bairro de Macapá (AP). Ao todo, a Wisley A. de Sousa LTDA, cujo nome fantasia é “Queijo Minas”, ganhou o direito de vender 147,3 mil toneladas de arroz para a Conab, ao preço de R$ 736,2 milhões. Por meio de seus advogados, a empresa disse ter condições de cumprir o edital.
A Icefruit, uma empresa cuja sede fica em Tatuí (SP), arrematou dois lotes do leilão, oferecendo 19,7 mil toneladas de arroz à Conab por cerca de R$ 98 milhões. Pelo cadastro na Receita Federal, é uma empresa média, cuja primeira atividade é a produção de conservas de frutas, alimentos e sorvetes. Ela também é registrada para atuar no comércio de alimentos.
O dono da empresa é Marco Aurélio Bittencourt Junior, que se tornou sócio no ano passado. Em nota, a empresa informou que tem experiência na importação e exportação de frutas e alimentos e que a operação de venda de arroz para a Conab é um “novo desafio”. “A empresa está com toda documentação em dia, com a carta de garantia e seguro e só vai receber do governo federal após a entrega do produto”, acrescentou.
O terceiro maior lote do leilão ficou com uma locadora de veículos do Distrito Federal, a ASR Locação de Veículos e Máquinas – como o nome diz, o principal negócio da empresa é o aluguel de maquinários. O dono, Crispiniano Espindola Wanderley, presidiu uma cooperativa de transportes públicos no Distrito Federal de 2002 a 2009. Citado em um inquérito que tinha como alvo o deputado federal Alberto Fraga (PL-DF), Wanderley disse em depoimento ter pago R$ 350 mil ao político, em vantagem indevida. Condenado num primeiro momento, Fraga acabou inocentado da acusação. A empresa foi procurada pela reportagem do Estadão, mas não retornou até o momento.
Rótulo do arroz que será vendido pelo governo federal a preço tabelado. Foto Conab/Divulgação. Foto Conab Divulgação
Quando foi fundada, em setembro de 2006, a mercearia Queijo Minas possuía capital social de apenas R$ 80 mil. No mesmo dia do anúncio do leilão pelo governo, em 29 de maio deste ano, a empresa alterou seu capital social para R$ 5 milhões, e deixou de ser uma microempresa, de acordo com informações da Junta Comercial do Amapá.
Para garantir o negócio, o empresário Wisley Alves de Sousa, dono da mercearia, terá de pagar uma caução de R$ 36,8 milhões à Conab até a próxima quinta-feira, 13, e ainda dar conta de entregar o produto no Maranhão, em Minas Gerais e em Pernambuco até setembro – e há certo ceticismo em relação a isso.
“No dia 13 a gente vai saber exatamente de quem nós estamos falando. Agora, eu não posso falar sobre quem vai ou quem não vai entregar o produto. Eu só tenho uma certeza que eu posso falar para você: a Conab vai fazer três fiscalizações. Prejuízo financeiro para o governo não vai ter nenhum”, afirmou o diretor de Operações e Abastecimento da Conab, Thiago dos Santos.
O capital social é uma estimativa feita pelos sócios de uma empresa do valor necessário para iniciar as operações, e não se confunde com a capacidade de pagamento da firma.
Outro dado que sugere a falta de capacidade da Queijo Minas para concluir o negócio aparece em uma ação de execução fiscal contra a empresa, iniciada em meados de 2022 pela Secretaria da Fazenda do Amapá. O governo local cobrava supostos débitos de ICMS não recolhido pela firma, no montante de R$ 825,9 mil. Com juros, multa e correção, o valor chegou a R$ 2,9 milhões, nos cálculos da Fazenda Estadual – o valor é contestado pelos advogados da firma.
No processo, que foi suspenso em maio passado, os advogados pedem (em agosto de 2022) que a Justiça reduza o pagamento inicial das custas processuais, pois a empresa não poderia arcar naquele momento com o pagamento de R$ 26,7 mil em custas.
“A embargante não tem condições financeiras para custear o total das custas sem prejudicar o funcionamento da empresa, como por exemplo o pagamento de funcionários, posto que, agora que efetivamente a empresa voltou ao regular funcionamento em virtude de passar toda a pandemia fechada”, diz um trecho.
À reportagem, o advogado Riano Valente Freire, que representa a empresa, disse que as custas já foram pagas e que a Queijo Minas terá condições de cumprir com o edital. “A empresa tem total condição de arcar com todos os custos da operação e de cumprir o previsto no edital”, disse o advogado, por e-mail.
Wisley Alves de Sousa já foi ouvido em um inquérito no Supremo Tribunal Federal (STF) que apurou possíveis crimes de fraude a licitação e desvio de verbas públicas por parte do ex-deputado federal Roberto Góes, na época em que o político era prefeito de Macapá (AP). Uma investigação do Tribunal de Contas do Amapá encontrou “indícios de sobrepreço na aquisição de utensílios de cozinha” para a Secretaria de Educação da prefeitura, na gestão de Góes, em 2010.
Na ocasião, a empresa de Wisley, que se chamava Distribuidora Premium, acabou contratada por R$ 352 mil pela Secretaria de Educação para fornecer os equipamentos. O Tribunal de Contas do Estado apurou sobrepreço, isto é, pagamentos inflados, no valor de R$ 113,6 mil. Durante a investigação no STF, a licitação foi reexaminada pelo Instituto Nacional de Criminalística (INC), ligado à Polícia Federal, que “confirmou a ocorrência de sobrepreço em 17 itens do Pregão (...), na ordem de R$ 172.939,85″.
Iniciada em 2015, o caso foi arquivado no STF em 2018, a pedido da então procuradora-geral da República Raquel Dodge – mas apenas porque não ficou provada a participação de Roberto Góes na fraude da licitação. “Apesar de comprovada a materialidade, o inquérito policial não reuniu provas da participação do congressista nos ilícitos apurados”, escreveu Dodge. Atualmente, Roberto Góes é deputado estadual no Amapá pelo União Brasil e vice-presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF).
As três empresas não costumam participar dos leilões da Conab - a ASR apareceu em um leilão no ano passado, organizado pela estatal para a venda de milho em uma operação para o governo da Bahia.
A Conab alega que as vendas foram feitas por meio das bolsas de alimentos, a Bolsa de Mercadorias do Mato Grosso (BMT) e a Bolsa de Cereais e Mercadorias de Londrina, que cadastraram as empresas interessadas em fazer ofertas de arroz importado ao governo federal.
Caso elas não apresentem até a próxima quinta-feira uma garantia equivalente a 5% do valor ofertado, serão multadas em 10% do valor da operação e banidas por dois anos dos leilões da Conab. As bolsas que as representaram no leilão também deverão ser punidas.
Grandes empresas que operam no mercado de arroz ficaram de fora
O presidente da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), Caio Carvalho, afirma que o setor se posicionou contra a compra de arroz importado pelo governo desde o início, o que pode ter resultado na ausência das empresas do leilão.
“A obviedade disso é o movimento da CNA, a Confederação Nacional do Agro, e de outros junto ao Supremo. Ou seja, todo mundo é contrário. O governo está absolutamente sozinho nisso. Sozinho e insistindo”, disse Carvalho.
Para o diretor da Conab, Thiago Santos, as margens apertadas oferecidas pelo governo, além de uma liminar na véspera suspendendo o leilão, podem explicar por que as empresas ficaram de fora.
Segundo Santos, 13 bolsas de alimentos do País se cadastraram para o leilão e, na hora marcada para a oferta, seis delas apareceram, mas só duas fizeram lances de oferta. Dos 27 lotes em que as empresas poderiam fazer oferta de arroz, só apareceu mais de um interessado em apenas dois, no Maranhão. No restante, levou a única empresa que fez um lance à Conab ou não apareceram ofertantes.
“Na hora do leilão, o que aparece para mim é apenas o lance da bolsa, não aparece que empresa é. Eu só sei que tem uma empresa que está dando um lance através de uma bolsa, mas eu não sei qual empresa, porque é a bolsa que cadastra a empresa, que verifica as regularidades junto aos normativos da Conab e junto ao nosso edital para saber se a empresa pode ou não participar do leilão”, afirmou Santos.
O executivo reconhece que as empresas não têm experiência e afirma que a Conab pretende fazer “reuniões orientativas” com as empresas que honrarem com o pagamento da garantia, para ter certeza de que farão a entrega do arroz como combinado. O edital prevê que o arroz entregue seja do tipo 1 agulhinha e chegue ao Brasil embalado em sacos de cinco quilos com o rótulo do governo.
A Conab revenderá esse arroz a redes de supermercado e atacarejo para que seja vendido ao preço tabelado de R$ 20 o saco.
No dia do leilão, o presidente da Conab, Edegar Pretto, afirmou que o leilão havia sido politizado. “Não esperávamos a mobilização para impedir o leilão, houve uma politização desse assunto. Ou não compreenderam ou acharam oportunidade para fazer oposição (ao governo)”, disse o executivo (Estadão, 8/6/24)
Leilão de arroz do governo foi vencido por loja de queijos
Fachada da Queijo Minas, no centro de Macapá (AP), maior vencedora do leilão de arroz do governo federal - Reprodução Google Street View
Conab diz que companhias precisam garantir entrega do produto; pregão virou alvo da oposição e do agronegócio.
Das quatro empresas que venceram o leilão de arroz do governo federal, a maior compradora é dona de um estabelecimento em Macapá (Amapá) que tem como atividade principal a venda de leite e laticínios. Outra é de um empresário de Brasília que disse à Justiça ter pago propina para conseguir um contrato com a Secretaria de Transportes do Distrito Federal (DF).
No total, o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) comprou 263,3 mil toneladas de arroz importado, por R$ 1,3 bilhão.
O objetivo do governo é amenizar os impactos das chuvas no Rio Grande do Sul sobre o abastecimento e os preços do cereal, mas a medida é questionada pela oposição e pelo agronegócio —que também é majoritariamente antilulista.
Segundo o governo, a importação de arroz é necessária em função da importância do Rio Grande do Sul na produção de arroz e porque a calamidade observada a partir do mês passado no estado pode desencadear repercussões negativas no abastecimento e nos preços internos, "colocando em risco a segurança alimentar e nutricional da população".
O leilão chegou a ser inicialmente suspenso pela Justiça Federal, mas foi liberado a tempo de sua realização —nesta quinta-feira (6).
Procurada pela Folha, a Conab (Companhia Nacional de Abastecimento), responsável pelo leilão, afirmou que as empresas precisam garantir a entrega do produto em um de seus armazéns, como indicado no edital, e atender requisitos de documentação e qualidade.
"As empresas vencedoras têm até cinco dias úteis para pagar a garantia de 5% sobre o valor da operação. Se a empresa não apresentar a garantia no prazo estipulado, é aplicada multa de 10% sobre o valor da operação e cancelada a negociação. Se a empresa pagar a garantia, mas não cumprir o previsto no edital, é aplicada multa de 10% sobre o valor da operação e a empresa perde a garantia paga", afirmou a companhia.
Qualquer desrespeito à legislação pode causar punições e implicações criminais e cíveis.
A maior arrematante do leilão foi uma empresa de nome Wisley A de Souza, que adquiriu 147,3 mil toneladas de arroz, tem como único sócio uma pessoa com esse nome e capital social de R$ 5 milhões.
Seu nome fantasia é Queijo Minas, e o endereço registrado na Receita Federal fica no centro de Macapá, capital do Amapá. Segundo imagens do Google, no local funciona o estabelecimento com este mesmo nome.
Já o email que consta no sistema federal é de uma distribuidora. Sua principal atividade (declarada pela própria empresa em seus registros públicos) é o comércio atacadista de leite e laticínios. A lista de capacidades secundárias inclui frutas e verduras, carnes, material de escritório, produtos de higiene e limpeza, e mercadorias alimentícias de armazém em geral.
Procurada por email, telefone e WhatsApp, a empresa não respondeu.
A segunda menor arrematante do leilão foi a ASR Locação de Veículos e Máquinas, com sede em Brasília.
Sua principal atividade é o aluguel de máquinas e equipamentos, mas nas secundárias consta uma série de outras, por exemplo, construção de edifícios e rodovias, obras, publicidade, desenvolvimento de programas de computador, serviços de escritório e de limpeza, além de comércio atacadista de diversas categorias, inclusive cereais.
Seu único sócio é Crispiniano Espindola Wanderley. Ele também participa de outras empresas de transporte e de um instituto de perícia forense.
Procurado pela Folha, ele disse que a ASR tem mais de dez anos de experiência e trabalha com seriedade. Afirmou que venceu um outro leilão da Conab em dezembro de 2023, para distribuição de 211 mil sacas de milho, que foram entregues com sucesso no estado da Bahia.
Entre 2002 e 2009, Wanderley presidiu a Coopertran (Cooperativa de Transportes Públicos do DF).
Ele é citado em uma investigação que mirou o atual deputado federal e então secretário de Transportes do Distrito Federal Alberto Fraga (PL-DF).
Em seu depoimento, Wanderley afirmou que Fraga lhe cobrou propina por intermediários para a assinatura de um contrato de ônibus com a cooperativa e que pagou R$ 350 mil para fechar o acordo.
Nas declarações, ele diz que sua cooperativa foi desclassificada do leilão no Distrito Federal na época (em 2007), mas recorreu e conseguiu ser vencedora do pregão. O então secretário teria, então, assinado o contrato apenas mediante o pagamento da vantagem indevida.
Diz ainda que, anos depois, ele foi retirado da cooperativa em razão de uma negociação malsucedida com o secretário, que teria prometido um contrato de R$ 1,3 bilhão mas não cumpriu.
Fraga chegou a ser condenado, mas recorreu e acabou inocentado da acusação de cobrança de propina. Wanderley não chegou a ser alvo de investigação. Há depoimentos de outros membros da cooperativa, alguns também citando o pagamento de propina e a destituição do ex-presidente por possível mau uso do dinheiro.
No entanto, a Justiça entendeu que as declarações não foram suficientes para corroborar o caso de cobrança de propina, por falta de provas.
Questionado, Wanderley confirmou o caso e disse que fez o pagamento já com intenção de denunciar o ex-secretário e que não entende como o político acabou inocentado.
"Fraga não quis nos entregar as permissões [para operar micro-ônibus]. Entramos na Justiça e ganhamos uma liminar. Como ele entrou com vários recursos, mas não conseguiu êxito, enviou um mensageiro com o objetivo de extorquir a cooperativa. A proposta era que de R$ 350 mil para receber as permissões", disse.
"Submeti aos cooperados a proposta indecente. Como já estávamos há mais de 60 dias sem operar, acabaram aceitando, e assim foi feito, mas com a convicção de que, assim que ele entregasse as referidas permissões, seria denunciado. Em seguida, quando recebemos as permissões, eu fiz a denúncia na delegacia de polícia", completou.
À reportagem ele disse que foi retirado da presidência porque a cooperativa estava com dívidas e que seus membros queriam deixar de pagar os fornecedores —mas que ele se opôs, e por isso o destituíram.
Fraga também foi procurado pela Folha, mas não respondeu.
O leilão foi criticado pela oposição ao governo Lula e pelo agronegócio, que questiona seus efeitos no mercado e sua necessidade.
A ex-ministra da Agricultura de Jair Bolsonaro (PL), Tereza Cristina (PP-MS), entrou com uma ação no Tribunal de Contas da União para que o pregão seja investigado.
Hoje senadora, ela solicita uma "auditoria de conformidade para analisar a necessidade e os impactos dessa importação para os agricultores brasileiros e para o mercado, bem como a capacidade financeira das empresas vencedoras do leilão".
Presidente do SindArroz-SC (Sindicato da Indústria do Arroz em Santa Catarina), Walmir Rampinelli diz que as vencedoras não costumam atuar no mercado de arroz.
"Além disso, com a entrada no mercado nacional desses mais de 8,7 milhões de fardos de arroz importados, temos a certeza de que muitas indústrias brasileiras provavelmente precisarão paralisar suas atividades e demitir colaboradores, sem contar que os próprios produtores de arroz estão desestimulados a continuar plantando", afirma (Folha, 8/6/24)