25/09/2019

‘Fala vai afetar muito as perspectivas do agronegócio brasileiro'

‘Fala vai afetar muito as perspectivas do agronegócio brasileiro'

Legenda: 'Desastroso'. Para Rubens Ricupero, discurso de Bolsonaro foi o mais desastroso já feito por um mandatario do País na ONU 

 

Para embaixador, presidente visa consolidar apoio de segmento que lhe deu vitória e ignora ótica internacional.

Embaixador aposentado com mais de quatro décadas de carreira no Itamaraty, o diplomata Rubens Ricupero acredita que o discurso do presidente Jair Bolsonaro na Assembleia-Geral da Nações Unidas (ONU) pode ter reflexos negativos em acordos comerciais e na relação com investidores estrangeiros. 

Subsecretário da ONU entre 1995 e 2004, quando comandou a Conferência das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvimento (Unctad), ele diz que a negação do desmatamento na Amazônia desperdiça o que, para ele, foi o “único trunfo” do Brasil na cena internacional: o prestígio pela condução de sua diplomacia do meio ambiente. Ricupero classificou o discurso como “desastroso” e disse que não há paralelo com a participação de outros representantes do País na Assembleia-Geral

Abaixo, os principais trechos da entrevista:

  • Qual a impressão do senhor do discurso feito pelo presidente Jair Bolsonaro?

Antes do discurso, eu já achava que o presidente iria a Nova York sobretudo em função do público interno, e não do público internacional. Ele fez exatamente isso, tanto que não sou só eu que estou dizendo. Se você tiver o cuidado de ler o tuíte do Flávio Bolsonaro, senador e filho dele, vai ver que ele diz exatamente a mesma coisa que eu digo: que o presidente fez, na ONU, o discurso vitorioso nas eleições aqui no Brasil, e por isso os derrotados estão protestando.

Ele mostra claramente que esse é um episódio que não se compreende pela ótica internacional, como seria natural. A chave para a compreensão do discurso dele é a política doméstica brasileira. Bolsonaro é um presidente obcecado pela perda de popularidade, que já está se lançando candidato à reeleição, e já está disputando com rivais como (o governador de São Paulo, JoãoDoria e outros. Ele radicaliza o discurso para consolidar o seu apoio naquele segmento que deu a vitória a ele.

Nenhum presidente brasileiro jamais fez um discurso desse tipo fora do Brasil. É como lavar a roupa suja fora de casa, de maneira escancarada. O discurso, às vezes, parece mais se dirigir contra os opositores internos do que externos. Mas sobrou para todo mundo: Cuba, Venezuela, França, Alemanha, ONU. Ele atacou todos. 

  • Qual a consequência de ele fazer um discurso desses na principal tribuna do mundo? 

Eu considero que é o discurso mais desastroso de todos os discursos feitos pelo Brasil desde que existe o debate da Assembleia-Geral. Conheço bem os discursos feitos por todos os antecessores porque escrevi um livro sobre a história da diplomacia brasileira (A diplomacia na construção do Brasil: 1750-2016, Versa Editores). É um discurso agressivo e belicoso no fundo, na forma e no tom. Bolsonaro estava claramente desconfortável naquele ambiente, sentia que era um auditório hostil. Não teve amenidades. Em diplomacia, às vezes a forma é mais importante do que o conteúdo. Nesse caso, tanto o conteúdo quanto a forma são muito duros. Ele confirma o que há de pior. 

  • E como isso se reflete nas relações do Brasil com os países?

Os acordos que o Mercosul tinha assinado com a União Europeia e a Área de Livre Comércio Europeu já estavam praticamente mortos. Agora, ele coloca vários pregos no caixão. Ele inviabiliza, no futuro previsível, qualquer esforço de boa vontade para apresentar esses acordos à aprovação dos diversos parlamentos europeus. Isso vai afetar muito as perspectivas do agronegócio brasileiro, da exportação do Brasil em geral.

Aquilo que o Brasil tinha, uma imagem positiva em meio ambiente, ele jogou fora, no lixo. Ele desperdiçou o único trunfo que o Brasil tinha. Nós não temos poder militar, não temos bomba atômica, nem poder econômico. Mas tinha aquele prestígio da sua diplomacia proativa em matéria ambiental. Agora, nós perdemos isso. Acho que isso vai alimentar essa onda contra nós. Antes de ir a Nova York, eu achava que era difícil piorar a situação. Eu me enganei. Ele conseguiu piorar.

  • O Brasil já tinha protagonizado embates com outros países. É uma oportunidade perdida? Era possível usar esse discurso como uma tentativa de reiniciar essas relações?

Se ele fosse uma pessoa diferente, acho que sim. Você se lembra que, pouco antes de ele sair daqui, houve aquele documento assinado por 230 fundos de investimento (em defesa da Amazônia). Eram fundos de mais de 30 países que manejam trilhões de dólares. Utilizando isso, ele poderia ter feito um discurso muito mais conciliador. Poderia dizer que tinha sido malcompreendido, que o Brasil quer atrair investimentos, que o País quer ter uma política de desenvolvimento sustentável. Ele poderia ter feito algo muito mais construtivo, como seria do interesse até do agronegócio, por exemplo. É uma oportunidade perdida e não sei se haverá outra. 

  • Há muitos apoiadores do presidente que esperavam que o tom fosse justamente esse, e concordam com essa posição. Ainda existe espaço para essa retórica na comunidade internacional, uma vez que ele está alinhado a líderes como Donald TrumpBoris Johnson e Viktor Orbán?

Não, não existe. Esses exemplos mesmo que você mencionou mostram claramente que isso é antidiplomacia. É querer desafiar aquilo que antigamente se chamava de “a opinião honesta da humanidade”. Esses homens são indivíduos criticados, despreparados. Quem é que admira Boris Johnson, à exceção daqueles poucos partidários dele? Ninguém. O Trump tem aquele núcleo de apoiadores fiéis, mas agora ele está lutando pela própria sobrevivência. Se você levar em conta que o Matteo Salvini (ex-ministro da Itália) já saiu de cena, que Binyamin Netanyahu já não tem mais nenhuma posição proeminente em Israel, e que Trump está salvando a própria pele, você vê que esse, aparentemente, não é o caminho do sucesso (O Estado de S.Paulo, 25/9/19)

 


Agro: Discurso claro defendeu o Brasil e não deve prejudicar exportações

Agricultores familiares criticaram fala do presidente sobre desmatamento e demarcação de terras indígenas. Bancada ruralista no Congresso e CNA avaliaram que presidente 'defendeu a agropecuária'.

  Representantes do agronegócio brasileiro avaliaram como positivo o discurso do presidente Jair Bolsonaro na abertura da Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) nesta terça-feira (24).

Em relação à fala de Bolsonaro, que chamou de "falácia" o argumento de que a Amazônia é patrimônio da humanidade e de que não vai aumentar a demarcação de terras indígenas, lideranças do setor não acreditam que, por causa do discurso, compradores internacionais vão interromper a compra de produtos agropecuários brasileiros.

"As questões comerciais [do agronegócio] são mais ligadas à segurança alimentar do que ao viés ideológico. Cabe a nós continuarmos produzindo com transparência e diversificação", avaliou o presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária, deputado Alceu Moreira (MDB-RS).

"Ele [Bolsonaro] quis botar um ponto final em relação à soberania da Amazônia. Ele manteve seu patamar ideológico e quis falar [também] sobre a questão da liberdade econômica", completou Moreira, que lidera um dos principais blocos de apoio de Bolsonaro no Congresso Nacional, com 235 deputados e 38 senadores.

Em nota, a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) disse que "Bolsonaro esclareceu equívocos sobre a Amazônia e ressaltou o importante papel do Brasil na produção mundial de alimentos".

"Também afastou a tese de que o governo está colocando o mundo contra o agro brasileiro, defendendo não apenas o setor, mas toda a nação", acrescentou a CNA.

Já a Confederação dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), que representa os agricultores familiares, "lamentou" o discurso do presidente brasileiro.

Para a associação, Bolsonaro erra ao "rejeitar a tese de que a Amazônia é um patrimônio da humanidade e ao negar o aumento de incêndios e desmatamento nos últimos dois meses no Brasil, mesmo com fotos de satélite, inclusive da Nasa, que comprovam".

"Apesar de afirmar que o seu 'governo tem compromisso solene com o meio ambiente', em nenhum momento falou da responsabilidade de pecuaristas, madeireiros, grileiros e garimpeiros nas queimadas", disse em nota a Contag.

G1 pediu posicionamento para outras entidades do setor, como a Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), para a Sociedade Rural Brasileira (SRB) e para a associação que representa as empresas exportadoras de soja (Abiove). Até a publicação deste texto, nós não tivemos resposta.

Soja

Para a associação que representa os produtores de soja (Aprosoja), o discurso do presidente da República atendeu aos desejos dos agricultores do produto mais exportado pelo Brasil.

Questionado se as reações internacionais ao discurso de Bolsonaro pudessem prejudicar as exportações do Brasil, o presidente da Aprosoja, Bartolomeu Braz, disse não acreditar nesta possibilidade.

"Não vejo dessa forma [risco de retaliação]. Nossos mercados são firmes, somos os mais sustentáveis do mundo e contra fatos não há argumentos", acrescentou o presidente da Aprosoja.

Braz disse ainda que o discurso de Bolsonaro "desmentiu informações erradas sobre o país" e que o presidente defendeu o setor.

"Todos são contra o desmatamento ilegal, é mentira que estão acabando com Amazônia, não dá para acreditar nas informações internacionais", disse Braz.

Embargos após incêndios na Amazônia

No fim de agosto, no auge da crise provocada pelas queimadas na Amazônia, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, disse que o Brasil não havia sido ameaçado com o fechamento de mercado a produtos do agronegócio por conta dos incêndios, já que a produção pecuária é significativa na região.

"Para mim [reclamações sobre riscos de embargos] só pela imprensa e em conversas pessoais. Apenas uma preocupação, mas de efetivo e concreto, nós não tivemos", disse a ministra.

"Você nunca está livre de um embargo. Cada país é soberano e sabe como reagir, mas eu acho que seria um casuísmo, mas a gente não está livre. Eu espero que não", completou Tereza.

Dias depois, porém, a VF Corporation, dona das marcas Timberland e Vans suspendeu as compras do couro brasileiro. A empresa não afirmou se a paralisação tinha relação com os incêndios na Amazônia.

À época, segundo a companhia, a medida valerá "até que haja a segurança" de que os materiais usados em seus produtos "não contribuam para o dano ambiental no país".

Já no início de setembro, o grupo sueco H&M, segundo maior varejista de moda do mundo, disse que deixará de comprar couro brasileiro temporariamente, como respostas às queimadas na Amazônia

"A proibição permanecerá ativa até que existam sistemas de garantia críveis para verificar se o couro não contribui para danos ambientais na Amazônia", afirmou a H&M (G1, 24/9/19)