Frigoríficos devem reduzir abate para proteger trabalhador na pandemia
Por Steffan Edward e Adroaldo Zanella
Legenda: Frigoríficos correm risco na pandemia - Getty Images
Unidades correm risco de terem as suas atividades interrompidas por tempo indeterminado.
Enquanto você lê isto, em algum lugar do mundo unidades frigoríficas estão correndo riscos de terem as suas atividades interrompidas por tempo indeterminado, o que pode, consequentemente, acarretar em milhões de animais sendo descartados antes mesmo de passarem pelas porteiras das fazendas.
Para alguns países, no entanto, este cenário já é uma realidade. Isso porque a pandemia do novo coronavírus tem acometido praticamente todos os setores, alguns com menor potencial de afetar diretamente a sociedade, outros capazes de abalar ainda mais a humanidade; dentre estes últimos, encontra-se a produção de alimentos de origem animal.
Para ilustrar o cenário, tomemos o Canadá como exemplo. Uma única planta frigorífica da Cargill, localizada em High River, a cerca de 64 km ao sul de Calgary, teve as suas atividades paralisadas devido a 45% da força de trabalho ter sido diagnosticada com a Covid-19, unidade esta fundamental para o suprimento de carne do Canadá, responsável por quase 40% da produção de carne bovina do país. Nos Estados Unidos, exemplos como este ganham espaço nas manchetes dos principais jornais.
Na Dakota do Sul, um dos maiores abatedouros de suínos (responsável por 5% da produção nacional de carne suína) foi fechado após 350 funcionários testarem positivo para Covid-19, número equivalente à metade de todos os casos de pessoas contaminadas no estado. Na Geórgia, uma unidade de processamento de aves da Perdue também já atestou às autoridades casos de Covid-19 entre os seus empregados. A gigante brasileira JBS, presente em vários países, também tem casos confirmados entre os seus funcionários.
Para evitar o agravamento da situação, uma das medidas propostas por especialistas é a redução do número de animais abatidos por dia. Em uma única unidade de processamento de aves, por exemplo, em média 1 milhão de animais são abatidos em uma semana de trabalho de cinco dias (200 mil aves por dia). Se uma planta cai para 50% da capacidade por até uma semana, 500 mil aves podem ser mortas nas granjas por meio de métodos de abate de emergência.
Em pouco tempo, dezenas de milhões de aves podem ser cruelmente mortas e simplesmente jogadas fora. Por esta razão, algumas empresas têm preconizado o contrário: acelerar a linha de abate, uma medida com imenso potencial para arrasar qualquer protocolo de bem-estar animal pré-estabelecido. Isso demonstra que o grande gargalo da situação é o fato de que quaisquer medidas tomadas podem acarretar em um verdadeiro efeito borboleta, com potencial para afetar toda a cadeia produtiva.
Até agora, no Brasil, apenas no Rio Grande do Sul, 11 frigoríficos têm casos confirmados de Covid-19. No entanto, ao contrário do Canadá e Estados Unidos, especialistas acreditam que é possível que os danos à nossa cadeia produtiva sejam mais diluídos, uma vez que a produção e processamento de produtos de origem animal, por aqui, não são tão concentrados como nos países citados.
De toda forma, o cenário se apresenta como um verdadeiro dilema; se, por um lado, a situação demanda distanciamento social, por outro, as próprias plantas frigoríficas não oferecem condições para tal. Em abatedouros de aves, por exemplo, funcionários operam praticamente ombro a ombro, cada um desempenhando uma função específica na linha de abate e processamento.
Além disso, estamos vendo os maiores abatedouros do mundo contratando auditorias privadas, o que levanta questões quanto à legitimidade do que atestam (na Geórgia, funcionários de uma unidade de processamento de aves — em sua maioria, imigrantes latinos — alegaram incapacidade de se apresentarem ao trabalho devido a febres, e o que consta no papel das auditorias é o contrário).
Para os animais, as consequência do fechamento de abatedouros podem ser ainda mais avassaladoras. Milhões poderão ser "eutanasiados" nas granjas e fazendas, e é indiscutível o fato de que nenhum produtor tem condições de seguir um protocolo de eutanásia que preconize o bem-estar para um número tão alto de animais.
É o que já vem acontecendo nos estados de Minnesota e Dakota do Sul; e aqui o uso do termo "depopulation" (despovoamento, em português), veiculado nas mídias, acaba sendo um eufemismo bastante perigoso, pois não revela, na prática, o que realmente implica.
Surgiram notícias sobre como, exatamente, algumas empresas responderão a esse desafio: abate em massa nas fazendas. Uma empresa de aves informou que mataria 2 milhões de aves usando métodos de abate de emergência. Tais empresas poderiam usar qualquer um dos métodos aprovados pela Associação Americana de Medicina Veterinária, incluindo sufocar as aves enchendo seus galpões com espuma. Nos EUA, o Conselho Nacional de Produtores de Suínos ameaçou matar leitões em massa caso o governo não intervenha com um resgate.
Na prática, é possível que as plantas frigoríficas que conseguirem manter o funcionamento sem precisar interromper as operações periodicamente sejam as que tomarem medidas de ordem educacional e preventiva, além do fato de que, para uma parcela das grandes redes frigoríficas, o enfrentamento deste cenário exigirá outras condições de funcionamento, o que poderá impossibilitá-las de bater metas estabelecidas antes da pandemia.
Medidas simples têm sido adotadas por algumas empresas, como a Perdue, citada anteriormente, que começou a usar barreiras de plástico transparente entre os funcionários que deveriam operar ombro a ombro. Outra medida adotada é a aferição da temperatura dos funcionários antes de cada turno de trabalho, o que é de fato importante. Todavia, não é completamente efetiva em se tratando de uma doença que se transmite assintomaticamente.
No momento, é de suma importância unir educação, criatividade e, mais do que nunca, automação. O Cecsbe (Centro de Estudos Comparativos em Saúde, Sustentabilidade e Bem-Estar) da USP, coordenado pelo professor doutor Adroaldo Zanella, propõe medidas para diminuir o impacto da pandemia na cadeia produtiva, algumas das quais devem ser adequadas para cada situação, como: reduzir o número de animais abatidos por dia; desacelerar a linha de abate; operar com menos funcionários; produzir vídeos institucionais de cunho educacional a serem apresentados durante os horários de refeições; testagens periódicas; adaptação dos equipamentos de proteção individual (como a implementação de protetores faciais transparentes); uso de exaustores que forcem a renovação do ar nas instalações; câmeras integradas a um sistema inteligente que detecte proximidade entre pessoas; notificação e coordenação dos procedimentos de respostas para com todas as partes pertinentes (autoridades de saúde e vigilância sanitária local, equipe de recursos humanos e de bem-estar animal, diretor de operações da instalação); criação de cargos para líderes de ações contra o coronavírus; entrevistar empregados afetados para determinar movimentos e contato com outras pessoas; verificação das gravações de câmeras internas a fim de identificar com quem os empregados estiveram em contato próximo; limpeza e higienização de toda a instalação entre turnos (além do saneamento completo pelo qual todas as instalações da empresa passam a cada 24 horas), com higienização adicional realizada em áreas acessadas pelo funcionário afetado nos últimos 14 dias; notificação àqueles que estiveram em contato com funcionários infectados; fornecimento de orientações de como proceder em caso de surgimento dos sintomas da Covid-19 e, quando necessário, acompanhamento com psicólogos.
Além disso, cartilhas e áudios instrucionais com informações objetivas e simplificadas estão sendo elaborados com o objetivo de educar os profissionais da área.
É possível que o Brasil tenha realmente como diluir o estrago da pandemia devido ao nosso processamento não ser tão concentrado como nos EUA e Canadá; no entanto, é inevitável que fiquemos receosos quanto a como as nossas unidades frigoríficas irão proceder para proteger os seus empregados, e como os produtores irão atuar para dar um fim minimamente digno aos animais, caso a situação torne-se de fato insustentável.
É preciso agir. E é preciso agir agora (Steffan Edward e Adroaldo Zanella, Cecsbe – USP; Folha de S.Paulo, 18/5/20)