Governo diz ao STF que tese contra marco temporal gera insegurança jurídica
Legenda: Cerca de 6.000 indígenas participam do acampamento Luta Pela Vida, em Brasília, com manifestações em frente ao Congresso Nacional Pedro Ladeira/Folhapress
Julgamento será retomado nesta quinta (2) com falas de entidades ligadas ao agronegócio, favoráveis ao dispositivo.
A AGU (Advocacia-Geral da União) do governo Jair Bolsonaro defendeu nesta quarta-feira (1º) que uma decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) contra a imposição de um marco temporal para definir quais terras indígenas devem ser demarcadas irá gerar insegurança jurídica e desrespeitará os precedentes da própria corte sobre o tema.
A afirmação foi feita pelo chefe do órgão, Bruno Bianco, que falou em nome do governo federal no julgamento que está em curso no Supremo e é considerado um dos mais importantes processos relativos ao assunto dos últimos anos.
A análise do caso será retomada nesta quinta-feira (2). Antes de os ministros começarem a votar, ainda faltam 17 entidades usarem a palavra, além da PGR (Procuradoria-Geral da República).
As sustentações orais realizadas nesta quarta deixaram claro que as divergências não giram em torno apenas do mérito da discussão, mas também sobre o histórico do STF em relação à constitucionalidade da existência de um marco temporal a ser observado para demarcação de terras.
De um lado, Bianco afirmou que em 2009 o Supremo reconheceu o direito dos indígenas em relação à área conhecida como Raposa Serra do Sol, em Roraima, porque eles estavam no local desde antes de 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.
Assim, segundo o advogado-geral da União, o STF definiu as balizas para demarcações e decidiu que elas só podem ocorrer em situações em que as populações tradicionais já estavam naquela região em 1988.
O advogado Rafael Modesto, da Comunidade Indígena Xokleng, da terra Ibiramala Klaño, por sua vez, afirmou que a interpretação de Bianco é uma tentativa de ressignificar aquela decisão favorável às populações tradicionais.
“As condicionantes serviram, e ficou claro, tão somente para dar operacionalidade àquele julgado. Destaque-se que o marco temporal parte do negacionismo, da negação à ciência antropológica, que conta com método próprio e é a única a dizer os limites das terras indígenas”, afirmou Modesto.
O julgamento do caso foi iniciado na semana passada, apenas com a leitura do relatório do processo pelo ministro Edson Fachin, que já votou contra o marco temporal quando o julgamento começou no plenário virtual.
Nesta quarta, houve 22 sustentações orais pelas partes do processo, pela União e por entidades que figuram como amici curiae na ação —a maioria defensores das causas indígenas.
Nesta quinta, devem usar a palavra associações vinculadas ao agronegócio, como a CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil) e a Sociedade Rural Brasileira.
A decisão a ser tomada pelo STF no caso valerá para todo o país, uma vez que foi aplicada repercussão geral ao caso. Atualmente, há 82 processos parados no Judiciário à espera de uma definição sobre a possibilidade de aplicação ou não da tese do marco temporal.
O debate chegou ao Supremo após o TRF-4 (Tribunal Regional Federal da 4ª Região) usar a regra de ocupação ou não das terras indígenas em 1988 para impor uma derrota à Comunidade Xokleng.
À época, a Funai (Fundação Nacional do Índio) recorreu da decisão e foi neste recurso que o STF resolveu fixar a repercussão geral.
O órgão do governo federal foi ao Supremo contra a ordem judicial do TRF-4 que concedeu ao Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (antiga Fatma, Fundação de Amparo Tecnológico ao Meio Ambiente) o direito à reintegração de posse do local que estava ocupado pelos indígenas.
Modesto afirmou ao STF que a decisão foi equivocada porque desconsiderou o histórico de violência e expulsão sofrido pelos Xokleng.
“Os índios eram caçados, amarrados de ponta cabeça e cortados ainda vivos a facão do púbis à cabeça, não sem antes jogar dinamite nas aldeias. Até casos de crucificação de indígenas são relatados. Esse foi o modus operandi para expulsar indígenas de suas terras. Vendiam terras ocupadas por indígenas como se devolutas fossem e depois os expulsavam”, afirmou.
Bianco, porém, afirmou que no julgamento sobre a Raposa Serra do Sol ficou definido que os indígenas que não estavam nas terras em 1988 só podem ter direito a elas caso comprovem que houve “esbulho renitente”.
“O revolvimento das salvaguardas institucionais firmadas no caso Raposa Serra do Sol tem o potencial de gerar insegurança jurídica e ainda maior instabilidade nos processos demarcatórios”, disse.
O advogado-geral da União pediu que o plenário do STF suspenda a eficácia da decisão de Fachin que sustou os efeitos de um parecer emitido pela AGU para orientar os demais órgãos da administração pública em favor do marco temporal.
Ele afirmou ainda que a corte deve levar em consideração que já há um debate sobre o marco temporal no Legislativo. “A necessidade de preservação da segurança jurídica fica acentuada quando se considera que há debate parlamentar em curso na Câmara dos Deputados." Segundo ele, “é de todo prudente se aguardar tal trâmite parlamentar”.
Já Deborah Duprat, que foi vice-procuradora-geral da República e já ocupou interinamente a chefia da PGR, falou em nome da Associação Juízes para a Democracia e defendeu a inconstitucionalidade da tese do marco temporal.
"A Constituição de 88 inaugura uma sociedade plural, onde a ideia de assimilação tem que ser afastada, porque é uma ideia de supremacia racial. Os povos indígenas são sujeitos de direito plenos, mas para isso, precisam de seus territórios", afirmou.
Luiz Henrique Eloy Amado, conhecido como Eloy Terena, por sua vez, usou a palavra em nome da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) e afirmou que adotar o marco temporal é “ignorar todas as violações a que os indígenas foram e estão submetidos”.
“É preciso perguntar: se determinada comunidade não estava em sua terra na data de 5 de outubro, onde elas estavam? Quem as despejou dali? Basta lembrar que estávamos saindo do período da ditadura, onde muitas comunidades foram despejadas de suas terras”, disse.
A advogada indígena Samara Carvalho Santos, do Mupoiba (Movimento Unido dos Poivos e Organizações Indígenas da Bahia), também lembrou o histórico de expulsões de aldeias de suas regiões.
"Impor sobre nós o ônus de estarmos ocupando nossas terras em 5 de outubro de 1988 é desconsiderar esse passado muito recente no qual sequer tínhamos o direito de escolher os nossos próprios destinos."
Grupos de indígenas acompanharam a sessão do tribunal na Praça dos Três Poderes. Na semana passada, estava montado um mega-acampamento em Brasília. Como o início do caso foi adiado, foi organizado um menor para esta semana.
Nesta quarta, eles desceram em direção à sede do STF e se concentraram em frente ao tribunal. Em dois momentos, houve princípio de confusão e de confronto de indígenas com pessoas contrárias às suas causas. A Polícia Militar interveio com uso de spray de pimenta.
Também nesta quarta, o ministro Kassio Nunes Marques foi diagnosticado com Covid-19. Apesar disso, ele participou do julgamento por meio de videoconferência. Na terça, ele havia participado de solenidade no TSE (Tribunal Superior Eleitoral) em que tomou posse como ministro substituto da corte eleitoral. A assessoria do magistrado informou que ele está isolado em casa desde o diagnóstico (Folha de S.Paulo, 2/9/21)
O que é o marco temporal e como ele atinge os indígenas do Brasil
Legenda: Garimpo em terras Yanomami: se aprovada, tese pode levar ainda mais insegurança para os territórios ocupados pelos povos nativos
Entenda por que a tese, que está sendo analisada no STF, pode significar um retrocesso na demarcação de terras dos povos originários.
"São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens." O texto é do artigo 231 da Constituição do Brasil, e não determina nenhuma data.
Mas um conflito entre indígenas e agricultores em Roraima, quando chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF), em 2009, acabou desencadeando na tese do marco temporal. Isto porque, para resolver a questão sobre a quem pertenceria de direito a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, os ministros argumentaram em favor do povo indígena — alegando que eles lá estavam quando foi promulgada a Constituição, em 5 de outubro de 1988.
Se naquele caso a tese era favorável aos povos originários, o precedente ficou aberto para a argumentação em contrário: ou seja, que indígenas não pudessem reivindicar como suas as terras que não estivessem ocupando em 1988.
"É uma ironia dos juristas, um deboche muito grande, essa teoria do marco temporal. Alguns povos não estavam em suas terras em 1988 porque a forma histórica de colonização do Brasil deixou muitas marcas, com indígenas sendo expulsos de seus territórios”, argumenta o pedagogo Alberto Terena, coordenador da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
Indígenas Xokleng: caso simbólico
No epicentro dessa discussão, a Advocacia Geral da União (AGU) entendeu, em 2017, que seria pertinente a tese do marco temporal. Como resultado, há cerca de 30 processos de demarcação de terra emperrados no Ministério Público Federal, à espera de uma definição do STF. Entre eles, um caso concreto bastante simbólico: o dos indígenas Xokleng, da Terra Indígena Ibirama La-Klãnõ, em Santa Catarina.
Historicamente perseguidos pelos colonizadores, os remanescentes da etnia acabaram afastados de suas terras originais na primeira metade do século 20. Em 1996, contudo, conseguiram a demarcação de 15 mil hectares — que depois se expandiria, em 2003, para 37 mil hectares.
Com o argumento do marco temporal, a área é reivindicada pela Fundação de Amparo Tecnológico ao Meio Ambiente. O caso foi parar no STF — com o entendimento de que a decisão final deve servir para balizar todos as disputas do tipo.
Em paralelo, tramita na Câmara o projeto de lei 490, de 2007, que pretende tornar mais difícil a demarcação de terras indígenas — inclusive utilizando o argumento do marco temporal.
"Objetivamente, o projeto significa um enorme retrocesso para o reconhecimento do direito dos povos nativos à terra e à manutenção de sua cultura”, avalia o sociólogo Rogério Baptistini Mendes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Qual seria o impacto para os indígenas?
Pesquisadora na Universidade de Brasília, a antropóloga Luísa Molina afirma, por sua vez, que a tese do marco temporal "reduz o acesso ao direito originário da terra" por parte dos povos indígenas.
"Uma terra indígena não é substituível por outra área, porque é um lugar sagrado, que tem história, onde se cultiva um modo de ser de cada povo”, explica Molina. "Ela é fundamental para a existência de um povo como coletivo diferenciado. É o que faz dele um povo. Se essa terra se perder, as condições da produção da diferença são atacadas e inviabilizadas."
A pesquisadora ressalta que, no caso, "cultura e vida estão na terra, no modo de viver na terra". E é esse o ponto que estaria em risco.
"De certa forma e incorrendo no exagero, é possível inferir a tentativa de aniquilação desses povos, pois a nova lei permite o avanço sobre terras demarcadas com a instalação de postos militares, expansão de malha viária e exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico, por exemplo”, afirma, por sua vez, Terena. "E, considerando o exemplo da história, particularmente neste período de governo Bolsonaro, não somente os nativos estão ameaçados, mas também o ambiente que ocupam e preservam.”
Terena argumenta que, se aprovada, a tese do marco temporal trará insegurança para os territórios ocupados pelos povos nativos — atualmente são 434 terras ocupadas tradicionalmente e demarcadas no país. "O nosso direito originário sobre a terra é constitucional. Negar isso vai trazer grande conflito, porque nosso povo nunca vai deixar de lutar pelo território”, diz ele.
A antropóloga Molina também vê riscos de disputas. "Coloca gasolina no incêndio, porque a realidade brasileira é de guerra fundiária”, comenta. "Essa tese intensifica muito esses conflitos, na medida em que viram arma de contestação.”
"Nossa terra é nossa mãe. Ela vai além do espaço geográfico. Ali está nossa história, nosso modo de vida, nosso sonho para as novas gerações. Ela significa a manutenção de tradições”, ressalta Terena. "A sociedade, conforme vem pregando esse governo, está tentando tirar nossa organização social.”
Para o sociólogo Mendes, a possibilidade de aprovação dessa tese — e do projeto em tramitação no Congresso — significa que os povos indígenas podem sofrer "ameaças ainda maiores do que as que enfrentam nestes dias de fiscalização precária e incentivo à invasão de suas terras”.
O sociólogo recorre aos registros da Câmara para comprovar a indisposição do atual presidente do país com a questão. Em 1998, o então deputado federal Jair Bolsonaro reclamou que o Brasil vivia "o governo da entregação”. E alardeou: "Competente, sim, foi a cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios no passado e, hoje em dia, não tem esse problema em seu país — se bem que não prego que façam a mesma coisa com o índio brasileiro; recomendo apenas o que foi idealizado há alguns anos, que seja demarcar reservas indígenas em tamanho compatível com a população" (DW, 1/9/21)