Há, sim, vínculos entre os maiores frigoríficos do Brasil e o desmatamento
Legenda: Gado pasta no Parque Nacional da Serra do Pardo, em São Félix do Xingu, no Pará - Rogério Cassimiro/Folhapress
Por Global Witness
ONG responde a artigo de Otávio Cançado sobre atuação de frigoríficos em desmatamentos.
Na Global Witness, nós tentamos ir além das campanhas publicitárias desonestas que o nosso trabalho lamentavelmente atraí, por expor a destruição do meio ambiente. Porém, algumas vezes, não nos resta outra escolha além de responder a elas. A recente tentativa de Otávio Cançado de descreditar um dos nossos relatórios nas páginas deste jornal é um desses momentos.
No nosso relatório, nós revelamos que, entre 2017 e 2019, no estado do Pará, as gigantes indústrias de carne JBS, Marfrig e Minerva compraram gado de um total de 379 fazendas que continham um equivalente de 20 mil campos de futebol de desmatamento ilegal. Isso em contradição aos acordos legais com promotores federais e compromissos voluntários de não-desmatamento, em vigor desde 2009. O artigo do Sr. Cançado consiste em uma combinação de artifícios estatísticos, distorções da verdade e omissão de fatos-chave. É uma satisfação para nós esclarecer os fatos.
O autor, ex-funcionário da JBS, começou com o apoio aos contra-argumentos dos frigoríficos às nossas denúncias. As empresas negaram que qualquer das 379 fazendas estivessem descumprindo seus compromissos de não desmatamento, criando uma gama de desculpas que encobrem cada uma das propriedades. Estas justificativas são apresentadas, agora, como fatos pelo Sr. Cançado. Ele não mencionou que a Global Witness analisou e contestou as justificativas apresentadas pelas empresas para cada uma das 379 propriedades, publicando análises de cada fazenda em links acessíveis a todos no nosso relatório.
Depois, o autor compara o total de 97.769 fazendas no Pará às 379 propriedades das quais a JBS, Marfrig e Minerva haviam comprado irregularmente. Diante disso, ele presume que a indústria da carne atingiu uma taxa de eficiência de 99.56% ao remover desmatamento das suas cadeias produtivas. Isso seria, certamente, impressionante –se fosse verdade. Porém, conforme reconhecido por ele, nem todas as fazendas no Pará fornecem para as três grandes empresas, que foram o tema principal do nosso relatório. Ele não está tratando de fatos comparáveis.
Ele também não menciona que o nosso relatório revelou que 4.000 fazendas, as quais são fornecedores indiretos das três empresas, continham um valor estimado de 140 mil campos de futebol de desmatamento. Esse fato, ainda mais chocante que o anterior, é completamente ignorado pelo autor.
Nos últimos três anos muitos relatórios conectaram os três frigoríficos ao desmatamento. Os analistas de risco financeiro da organização Chain Reaction Research (CRR) estimaram, de forma conservadora, que, em 2019, a JBS comprou gado de 983 fazendas com mais de 20 mil hectares de desmatamento. Outras 1.874 fazendas, de fornecedores indiretos da JBS, tiveram mais de 50 mil hectares de desmatamento. A Reporter Brasil, o Greenpeace Brasil e a Anistia Internacional fizeram denúncias similares, embora tenham sido negadas ou evitadas, como de costume, pelas companhias.
Existem, ainda, outras táticas que possibilitam que o gado de fazendas desmatadas na Amazônia entrem nas cadeias produtivas das três empresas que o nosso relatório nem chegou a analisar. Por exemplo, fazendas teoricamente legais comercializam gado de fazendas clandestinas. No ano passado, o Greenpeace Brasil alegou que a JBS, a Marfrig e a Minerva fizeram compras de uma fazenda envolvida em lavagem de gado (as empresas alegaram que os casos eram de difícil identificação). O número real de todas as fazendas com desmatamento e que abastecem as três companhias é desconhecido.
Em certo momento, o autor sugere que as Guias de Trânsito Animal (GTA) para o transporte de gado, nas quais o nosso relatório se baseia, não são documentos públicos. Nós solicitamos estudos legais e independentes para verificar se as GTAs são de domínio público ou não. O relatório analisa esta questão em detalhe. De acordo com um precedente judicial do STF (Supremo Tribunal Federal), em um julgamento no qual o Ministro Edson Fachin foi relator, o tribunal concordou que as GTAs são documentos públicos.
Nós estamos cientes de que a JBS, e até o Ministério da Agricultura, contesta essa afirmação. Porém, o Ministério é amplamente considerado um porta-voz do agronegócio e o precedente do STF fala mais alto.
A utilização das GTAs é o primeiro passo de uma luta mais ampla para assegurar o rastreamento de cadeias produtivas de alto risco, uma vez que as três empresas estão sob o constante escrutínio de seus investidores, bancos e compradores, para garantir que não estejam ligados ao desmatamento.
Diferentes das informações da cadeia de fornecedores da JBS, Marfrig e da Minerva, nossos dados estão disponíveis publicamente. Nós defendemos as nossas conclusões, nas quais acreditamos levantar preocupações sérias e alarmantes.
Em tempos em que a destruição da Amazônia é a maior desde 2008, cada ator conectado ao desmatamento deveria estar fazendo o possível para diminuí-lo. Artigos distorcidos e enganosos escritos por membros da indústria não deveriam deixar de ser contestados quando eles têm o simples objetivo de disfarçar o desmatamento em nome de velhos amigos de corporações sedentas por lucros (Global Witness é uma ONG fundada em 1993 com atuação global em assuntos relacionados a corrupção, direitos humanos e meio ambiente; Folha de S.Paulo, 4/2/21)