Histórias de produtores que estão revolucionando a pecuária
Por Vera Ondei
No dia do pecuarista, a Forbes mostra histórias inspiradoras na arte de cuidar de animais e gente
O consumo de carne está na base da alimentação do brasileiro, é uma paixão nacional e o churrasco o melhor exemplo. Porque, embora o país exporte muita proteína, a maior parte da produção vai para o prato do brasileiro: 70% da carne bovina fica no país. Nas últimas décadas, os produtores — grandes, médios e pequenos — vêm trilhando o caminho da produtividade, apostando em sistemas cada vez mais sustentáveis, com inovação e tecnologias que ajudam a tirar da terra o máximo, preservando o bem maior das propriedades rurais: a natureza que sustenta a produção.
Integrar as criações com o cultivo de grãos e o plantio de árvores; medir o sequestro positivo de gases de efeito estufa nas pastagens, mostrando que sistemas equilibrados sequestram mais gases de efeito estufa do que emitem; buscar animais de genética mais apurada; contribuir para o refinamento das técnicas de bem-estar animal; são parte de uma pecuária que evolui constantemente.
Justamente porque a história da pecuária no país se confunde com a sua própria história, com os primeiros bovinos desembarcando em 1531, fruto da iniciativa de uma mulher: Ana Pimentel de Souza, a verdadeira administradora de uma das capitanias da época. Hoje, a dimensão e importância da pecuária é reflexo do tamanho do país e da riqueza de sua vocação: 200 milhões de bovinos, rebanho responsável por 10 milhões de toneladas de carne, por ano.
A pecuária brasileira mudou, passando por uma gigantesca transformação: se até meados dos anos 1980, o crescimento do setor era explicado pelo aumento de área utilizada, hoje, enquanto a área de criação diminui, a produção aumenta, mostrando mais eficiência e menos desperdícios. Neste dia do pecuarista, a Forbes mostra a história de três pecuaristas – duas mulheres e um homem – que apostam nas inovações e na liderança construtiva para produzir com sustentabilidade. Confira:
Legenda: Ida Beatriz Miranda Sá, presidente do Sindicato Rural de Cáceres (MT), diz que tem um universo feminino à sua volta
Nesses tempos de pandemia, as lives promovidas todas às terças-feiras pelo sindicato têm mostrado aos produtores da região como manejar o bioma, produzir mais e mitigar os impactos das queimadas. “Na mais recente live falamos sobre produção pantaneira sustentável, com nossos técnicos de campo”, afirma a pecuarista. A próxima, na terça (20), será sobre queima prescrita, com técnicos do ICMBio que vêm conduzindo experiências na unidade de conservação da Serra das Araras. A queima prescrita é um método de prevenção utilizado pelo ICMBio, planejado para consumir o material combustível acumulado no bioma, renovando a vegetação e preservando a diversidade biológica da área. “Como agora começa o período de incêndios, queremos estar bem preparados”, declara Ida.
Ida é hoje uma liderança em sua região e um exemplo de pecuarista focada na preservação do bioma e nas tecnologias que ajudam o produtor a ser eficiente. No ano passado, quando o Pantanal enfrentou um dos períodos com os maiores incêndios e queimadas de sua história, ela estava na linha de frente de combate aos incêndios nas propriedades rurais. Nessa labuta, a pecuarista sabe que não está sozinha.
Ida tem um time de mulheres com as quais constantemente troca experiências, como na imagem abaixo, na qual ela está com Zulema Neto Figueiredo, diretora do campus da Unemat (Universidade do Estado de Mato Grosso); a tenente-coronel do corpo de bombeiros, Luciana Bragança Brandão da Silva, a primeira mulher a assumir a chefia regional do órgão, em cerimônia que ocorreu ontem (14), e a prefeita do município, Eliane Liberato.
De fato, a história de Ida é plena de mulheres à sua volta. Na fazenda Nossa Senhora do Machadinho, que ela divide com o marido, a filha de 14 anos é presença constante na lida dos 3.200 hectares onde o rebanho de cria entrega todos os anos cerca de 600 bezerros para a venda. A propriedade é parte da herança da fazenda mãe, a Santa Fé do Machadinho, de 15 mil hectares divididos entre os herdeiros. “A minha mãe é pantaneira. Ela se casou com 25 anos e com 27 anos meu pai apresentou um câncer terminal.
Na época, a família morava no Rio de Janeiro e não houve dúvida: voltamos para o Pantanal”, conta Ida. Quando trocou, definitivamente, de vida tinha quatro anos de idade. “Meu avô socou minha mãe no meio do Pantanal. Era ela que cozinhava para os peões e sempre digo que é uma mulher de raça”.
Por conta disso, Ida acredita que sua história não poderia ter sido diferente. “Na minha família tem muita mulher forte. Minhas duas bisavós, minhas duas avós, eram mulheres muito decididas, determinadas, independentes”, afirma. “Tenho um universo feminino em Cáceres.”
Victor Campanelli, uma máquina de produzir carne com sustentabilidade e tecnologia
Legenda: Victor Campanelli, da Agropastoril Paschoal Campanelli, tem na tecnologia os instrumentos para produzir com qualidade
O confinamento da Agro-Pastoril Paschoal Campanelli, com sede em Bebedouro (SP) e unidade produtiva no município de Altair, a cerca de 80 quilômetros, é referência em tecnologias de engorda intensiva de bovinos. A capacidade das instalações é de cerca de 30 mil cabeças, com 75 mil bovinos abatidos em 2020, levando em consideração dois giros de engorda. Para este ano, a previsão é abater 90 mil animais. À frente dessa máquina de produzir carne está o administrador de empresas Victor Campanelli, terceira geração de uma família de agropecuaristas que também cultiva grãos e cana-de-açúcar.
“Eu tive o privilégio de ser de fato, junto com meus irmãos e primos, sucessor e não herdeiro. Meu pai e meus tios estão saudáveis e ativos. É muito bacana ter a experiência deles, não contada, mas vivida”, diz Campanelli. “O que vem deles é muito conhecimento único. A pecuária é uma paixão e o conhecimento da apartação dos animais é uma ciência. Às vezes, a gente tem posições muito racionais, porque sou muito de número, mas o conhecimento do meu pai e meu tio, ainda saudáveis e ativos, é diferente, é engrandecedor.”
O confinamento é considerado entre os mais tecnificados do país. A aposta em pesquisa e desenvolvimento é uma constante, com projetos visando a melhoria da terminação intensiva. Quando Campanelli se refere a “ser racional”, em trabalhar com números, significa gerir os riscos da entrada dos animais no confinamento, na dieta, na engorda, na sanidade e no comércio da boiada, que é toda rastreada visando mercados de carne de qualidade. “Olhando para dentro da porteira, o maior desafio é manter uma rentabilidade condizente com a agricultura”, diz o produtor. “A agricultura é o nosso concorrente em terra, em business. A saída é a sinergia, buscar a integração da agricultura com a pecuária, dar as mãos.”
Legenda: Confinamento em Bebedouro (SP), é um dos mais modernos e eficientes do país
Para ele, o futuro da pecuária está nos sistemas integrados. “O Brasil tem uma vantagem competitiva muito grande, porque há lugares em que o produtor consegue fazer safra, safrinha e uma terceira safra de boi.” Campanelli compara os sistemas locais com o modelo americano de pecuária. “É um modelo quase homogêneo, porque a cria é feita a pasto e a terminação em confinamento. No Brasil tem multi modelos que podem dar certo. Nosso trabalho é diferente e, lógico, queremos estar à frente, mas como o meu há muitos outros projetos bacanas.”
A intensificação dos sistemas é uma demanda atual, pelo capital envolvido, que é muito grande. “É preciso rentabilizar esse capital, fazer pecuária intensiva e de alta produtividade. Por exemplo, quando você integra a lavoura-pecuária com um confinamento, devolvendo esterco orgânico para a agricultura, isso é um sistema sustentável”, afirma. Campanelli diz que o grande desafio atual é comunicar a responsabilidade social e ambiental, mostrando que o setor gera empregos e cuida do meio-ambiente. “Um dos maiores desafios da pecuária brasileira está fora da porteira da fazenda, que é a gente conseguir se comunicar cada vez melhor, mostrar que a proteína vermelha não é nem vilã do meio ambiente, bem como não é vilã de uma vida saudável, de uma dieta bacana. A pecuária é sustentável.”
Carmen Perez, a voz do bem-estar animal
Carmen Perez FOTO Enilson Arneiro Divulgacao
Legenda: Carmen Perez é uma ativista do bem-estar animal que começa no nascimento do bezerro
A pecuarista Carmen Perez, 43 anos, dona da fazenda Orvalho das Flores, no município de Araguaiana, no vale do rio Araguaia, em Mato Grosso, é uma voz na pecuária com um tom preciso: tudo que ela faz tem na base o bem-estar animal. Carmen é estudiosa em um tema do qual ela não esconde a fonte de sua busca por conhecimento: o Grupo Etco, da Unesp (Universidade Estadual Paulista) de Jaboticabal, liderado pelo professor Mateus Paranhos, e em universidades internacionais. Carmen é uma das poucas pessoas no mundo que recebeu em sua fazenda a maior autoridade global em bem-estar animal, a norte-americana Temple Grandin, professora na Universidade do Estado do Colorado e autista que tem a sua história contada em filme que pode ser conferida na HBO.
De uma família do setor sucroalcooleiro, desde a infância Carmen teve uma ligação muito forte com os animais, especialmente os cavalos. Optou por ser pecuarista profissionalmente a partir dos 20 anos, desde que o fizesse de uma forma que aliasse a produção e o bem-estar animal.
Há 13 anos trabalha intensivamente a pesquisa e acredita seguramente que as boas práticas nortearão um novo comportamento no campo em todo o mundo. Mas ela não fica apenas na lida da fazenda. Ativista nas redes sociais, a pecuarista deve mostrar brevemente o projeto “quando ouvi a voz da terra” baseado no poder das histórias. “Estou tão envolvida e está sendo um grande aprendizado”, afirma. Carmen vai contar, em audiovisual, experiências ocorridas no campo e outras histórias a partir de seu olhar e vivências.
Legenda: Temple Grandin, na Orvalho das Flores, explicando como manejar os bezerros
Para ela, o bem-estar animal começa quando os animais são ainda bezerros. Não por acaso, dentre as práticas estudadas em sua fazenda está a identificação sem marca a fogo em bovinos e a desmama lado a lado do bezerro com sua mãe. Ela já esteve na Alemanha para representar o Brasil nesse tema, sendo uma das editoras do livro “Bem-estar animal no Brasil e na Alemanha. Responsabilidade e Sensibilidade”. A fazenda Orvalho das Flores tem um rebanho de cerca de 3.000 animais da raça nelore, dos quais metade são matrizes.
Por exemplo, os cuidados com os bezerros começam no nascimento. Eles recebem massagens pelo corpo, realizadas por um peão, enquanto outro peão coloca o brinco de identificação e faz a cura do umbigo. A mudança foi inspirada nas teorias de Temple e não precisou de mais peões para a tarefa, o que mudou foi a postura e a educação do olhar para enxergar os animais como seres sencientes, ou seja, têm capacidade para sentir dor, sofrimento e alegrias, assim como os seres humanos (Forbes, 15/7/21)