“Hoje não tem ninguém produzindo alimento mais barato que o Brasil’

Para Cabrera, restringir as exportações agrícolas, com o objetivo de reduzir os preços dos alimentos, pode afetar a confiabilidade do País lá fora. Foto: Arquivo Pessoal/Antonio Cabrera
O ex-ministro da Agricultura afirma que os produtores estão cumprindo a sua função de fornecer produtos acessíveis à população e que o governo deveria eliminar todo tipo de tributo incidente sobre a cesta básica para baixar os preços da comida no País
Entrevista com Antonio Cabrera, ex-ministro da Agricultura no governo Collor e presidente do Grupo Cabrera.
O ex-ministro da Agricultura, Antonio Cabera Mano Filho, de 64 anos, tem uma sugestão para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva baixar os preços dos alimentos no País: eliminar todo tipo de tributo incidente sobre os produtos da cesta básica. Em sua avaliação, porém, não há nada mais que o governo possa fazer hoje, para conter de imediato a alta de preços da comida para a população. “Não adianta a gente mentir, tentar entregar uma mensagem que depois não vai se confirmar”, afirma.
Em entrevista ao Estadão, Cabrera diz que a proposta de restringir as exportações de alimentos para ampliar a oferta de produtos no mercado interno, que voltou a ser ventilada em Brasília, seria um “erro crasso”. Ele fala também sobre a gripe aviária, o aumento da alíquota de importação de fertilizantes e a tributação dos Fiagros (Fundos de Investimento nas Cadeias Produtivas Agroindustriais) pelo governo Lula. Cabrera analisa, ainda, os efeitos da elevação tarifária imposta pelo presidente americano, Donald Trump, para o agronegócio brasileiro. Confira a seguir os principais trechos da entrevista.
Com a alta dos preços dos alimentos, o presidente Lula defendeu um boicote aos produtos que haviam encarecido, como os ovos, e jogou a culpa nos exportadores. Como o senhor viu a atitude do governo em relação aos preços dos alimentos? E qual a sua avaliação sobre as medidas adotadas pelo governo para enfrentar o problema?
Eu lhe pergunto: quais as medidas que ele tomou para melhorar isso? Nenhuma. As alíquotas de importação, que o governo zerou, já eram baixas desde 1990. Isso foi uma medida populista, sem qualquer efeito prático. Se o agro está batendo recorde atrás de recorde e o Brasil está aumentando a sua produção, não dá para falar que o setor tem alguma responsabilidade sobre a alta dos alimentos.
O Lula deveria ter feito aproveitado essa oportunidade para negociar a redução das alíquotas de importação dos Estados Unidos para os alimentos brasileiros. Agora, com aumento de tarifas do (Donald) Trump (presidente dos EUA), virou uma bagunça geral. Mas, antes disso, o suco de laranja mexicano, por exemplo, pagava zero de imposto, por causa do Nafta (Tratado Norte-Americano de Livre Comércio). Enquanto isso, nós estamos pagando US$ 415 dólares por tonelada de suco.
Então, embora a gente seja mais competitivo, estamos perdendo o mercado americano. O Lula poderia ter dito para o Trump: “É redução de alíquota que você quer? Pois bem, eu vou fazer uma proposta: a gente aceita reduzir a alíquota de importação de alimentos dos Estados Unidos, mas você abre as importações para o açúcar brasileiro, para o suco de laranja brasileiro, ok?”. Nós somos tremendamente penalizados pela falta de uma postura mais ativa da diplomacia brasileira.
Como exatamente a diplomacia do País prejudica o nosso agronegócio?
Nós não temos até hoje nenhum acordo comercial. Zero. Todos os nossos concorrentes têm. A agricultura americana, por exemplo, já tem 19 acordos comerciais, com blocos ou com países. Nós estamos há 20 anos olhando para o Mercosul, para o acordo do Mercosul com a União Europeia. A gente fica com essa questão ideológica, de “vamos tentar negociar um acordo global”. Não dá. Daqui pra frente, a gente tem de buscar acordos bilaterais.
Às vezes a gente diz assim: “O governo abriu o mercado para os produtos brasileiros”. Mas o governo nunca abre o mercado. Quem abre o mercado são as empresas brasileiras. Tudo isso que o Brasil conquistou no agro, esses 230 países e territórios para os quais a gente exporta hoje, aconteceu pela ação dos empresários, do setor privado. O que o governo faz é apenas formalizar, legalizar, a questão dos acordos sanitários. Nada mais do que isso.
Quando o presidente criticou a alta de preços dos ovos, ele jogou a culpa nos exportadores. Mas 99% da produção de ovo do Brasil fica no mercado interno
Na sua visão, que medidas o governo poderia tomar com impacto imediato nos preços dos alimentos?
No curtíssimo prazo, eu mexeria na questão tributária, eliminando todo tipo de imposto que incide sobre a cesta básica. Esta é uma medida que pode ser feita agora. Mas o governo Lula aumentou, por exemplo, a alíquota de importação de fertilizantes. Isso não contribui para reduzir os preços dos alimentos. Ao contrário.
A agricultura brasileira, com o tremendo aumento de produtividade ocorrido nas últimas décadas, está cumprindo a sua função de fornecer o produto mais barato para a população. Em 1995, o salário mínimo comprava 104,5kg de arroz. Em fevereiro de 2025, dava para comprar 210 quilos com o mínimo, ou seja, o dobro do que se comprava antes. Em janeiro de 1995, com o salário mínimo, era possível comprar 61,5 quilos de feijão. Em fevereiro de 2025, dava para comprar 178,7 quilos, quase três vezes mais.
Com a carne, aconteceu a mesma coisa. Em janeiro de 1995, o salário mínimo comprava 16,3 quilos de colchão de dentro, que é um corte de carne bem popular. Em fevereiro deste ano, o mínimo comprava 31,2 quilos. É preciso também considerar que a gente não está tendo um aumento adequado na renda do brasileiro. Ao contrário. Hoje, 54 milhões de brasileiros vivem do Bolsa Família. Isso cria essa percepção de que tudo está caro. Então, o aumento de renda é uma questão fundamental para mudar isso. Não um aumento da renda anabolizado pelo governo, mas um aumento da renda sustentável, proporcionado pelo desenvolvimento da economia, do País.
Em relação a medidas emergenciais, digamos assim, haveria mais alguma coisa a fazer para reduzir os preços dos alimentos no País no momento, além do corte de tributos?
Na minha opinião, não há nada mais que se possa fazer para baixar os preços de imediato, a não ser que haja uma ou outra safra mais favorável, mas mesmo assim vai ser algo temporário. Não adianta a gente querer mentir, tentar entregar uma mensagem que depois não vai se confirmar. Eu não vou ser populista aqui. Não vai ter alimento mais barato. Primeiro, pelos problemas internos, como a falta de entendimento do presidente sobre a realidade do agro, e segundo, pelos problemas externos. Hoje, qual é a realidade? Ninguém no mundo está produzindo proteína animal ou vegetal tão barata como o Brasil. Por isso que o presidente zerou as alíquotas e não resolveu nada, porque não tem ninguém que produza algum produto mais barato do que o que a gente está produzindo.
Quando, por exemplo, o presidente criticou a alta dos preços dos ovos, ele jogou a culpa nos exportadores, como você falou. Mas 99% da produção de ovo do Brasil fica no mercado interno. Menos de 1% é exportado. Então, como você vai jogar a culpa no exportador? Outra coisa: como é que eu posso falar que os preços dos alimentos vão baixar com a atual taxa de juros? Quem é que vai plantar para produzir um produto mais barato com essa taxa de juros?
O crédito rural não é subsidiado?
Muito pouco. Não sei se você sabe, mas hoje em torno de 70% dos recursos que financiam a safra vêm do mercado e não do governo. Em 1990, os recursos destinados ao agronegócio representavam 8% do PIB (Produto Interno Bruto). Hoje, são menos de 1% do PIB. E, em 1990, a gente produzia 57 milhões de toneladas de grãos. Agora vamos produzir 330 milhões de toneladas, quase seis vezes mais. A agricultura brasileira hoje é a menos subsidiada do mundo.
Não tem nenhuma agricultura tão pouco subsidiada como a brasileira. Só para você ter uma noção, hoje 45% da renda da agricultura americana dependem do Tesouro. Na França, isso chega a 90%. Eu sempre brinco que a França não tem agricultores, tem funcionários públicos. Então, de longe, disparadíssimo, somos a agricultura menos subsidiada e a mais tributada. E a maioria desses recursos subsidiados vai principalmente para pequenos e médios produtores do País.
Muitas vezes, esses recursos são viabilizados por meio de um mecanismo chamado “Equalização da Taxa de Juros”, que foi criado lá atrás, para não sangrar o Tesouro. Funciona assim: se você vai precisar de R$ 50 milhões, o Tesouro entra apenas com a diferença entre os juros de mercado, digamos de 25% ao ano, e a taxa de crédito rural subsidiada, de 15%, por exemplo. É essa diferença de 10% que o Tesouro vai pagar. Então, numa operação de R$ 50 milhões, o governo entra com R$ 500 mil, por meio dessa “equalização” dos juros, e não com o valor total do financiamento.
O governo deu um forte empurrão na direção da estatização do crédito rural.
Recentemente, o governo resolveu tributar os fiagros (Fundos de Investimento nas Cadeias Produtivas Agroindustriais) por meio de uma Medida Provisória que está em discussão no Congresso. Como isso deve afetar a captação de recursos pelo agronegócio?
Isso é uma coisa incrível, que aumenta o preço da cesta básica. Os fiagros, hoje, são a principal fonte de financiamento e custeio do setor. Quando o governo enviou essa Medida Provisória para o Congresso tributando esse tipo de financiamento, o que aconteceu? Travou o sistema, subindo ainda mais ainda os juros. Essas medidas têm consequências. Cada decisão que você toma no ar-condicionado de Brasília tem consequências. E às vezes a gente não consegue imaginar o tamanho do impacto que elas causam no setor produtivo.
A gente sempre brinca que o melhor adubo é o crédito. Se você está encarecendo o crédito, não tem como reduzir os preços dos alimentos. E, na semana passada, o governo restringiu também a emissão de CRAs (Certificados de Recebíveis do Agronegócio) por parte de empresas de capital fechado com menos de dois terços de receita no agro, como já havia feito com as companhias de capital aberto. Foi mais um forte empurrão na direção da estatização do crédito rural.
Durante as discussões das possíveis medidas que o governo poderia tomar para reduzir os preços dos alimentos, voltou à tona a proposta de se adotar restrições às exportações agrícolas. Como o sr. analisa esta questão?
Muitas pessoas imaginam que restringindo as exportações agrícolas você vai baixar o preço aqui dentro. Isso é um erro crasso. É o que acontecia lá em 1990, que a gente conseguiu derrubar. Se é para cometer algum erro, vamos cometer um erro novo. Cometer um erro velho não faz o menor sentido. Hoje, em termos de mercado internacional, as pessoas querem sustentabilidade, as pessoas querem preço acessível, produtos de qualidade.
Mas, mais que tudo, sabe o que os mercados compradores querem hoje? Eles querem confiabilidade. E eu não estou falando da importação de chip ou de carro. Se alguém deixar de vender carro, tudo bem. Eu estou falando de alimento. Imagine quando o comprador olha para cá e fala: “Pera aí, tem um grupo de deputados lá no Brasil que está apresentando um projeto de lei para restringir as exportações de soja”. O que você acha que o chinês vai pensar em relação a isso? Falta de confiabilidade.
Às vezes você pensa que está tomando uma decisão hoje, que é de curto prazo, que vai afetar pouco o mercado, mas elas têm consequências tão intensas que vão afetar as coisas 20, 30, 40 anos depois. Além disso, nós temos uma responsabilidade em relação à alimentação do resto do mundo muito grande. A gente precisa tomar muito cuidado nessa decisão de romper esses laços, porque essa confiabilidade é muito frágil. Alguém pode ocupar esse espaço, para que a gente possa ter um produto barato aqui dentro, e aí depois fica difícil recuperar.
Os acordos sanitários que a gente tem são muito antigos e meio retrógrados
Fora o desestímulo que você gera para o produtor rural ao conter as exportações...
Imagina um produto que fica 70% no mercado interno e 30% vai para o mercado externo. Quando você fecha essa porteira, vão sobrar 30% desse produto no mercado interno. Você vai derrubar o preço e vai fazer o quê? Quem é que vai consumir isso? Você sabe qual é o principal óleo comestível hoje da população mais pobre no Brasil? É o óleo de soja. Hoje o óleo de soja é o principal óleo de fritura da população mais vulnerável do Brasil. E a gente só consegue fazer isso porque escalou essa produção. Nós temos um volume gigantesco de exportações de soja e com isso a gente gera o farelo e o óleo de soja. Quando eu consigo exportar uma tonelada de soja, estou garantindo um preço mais barato do litro de óleo de soja para a população mais pobre no País.
Como estão hoje os preços dos alimentos no País no mercado internacional?
Há commodities que nunca tiveram preços tão altos, como o café, o cacau, o ovo. Estes produtos estão com recordes históricos de preço. Fui fazer uma palestra sobre pecuária de corte nos Estados Unidos há cerca de trinta dias e todo supermercado em que eu entrei em Chicago, quando você chegava na sessão de ovos, tinha uma plaquinha dizendo o seguinte: “Quatro itens por cliente”. Você consegue imaginar isso? Nos Estados Unidos, nos supermercados de Chicago, havia uma placa dizendo que o limite de compra por cliente era de quatro ovos.
Com a gripe aviária que aconteceu lá, 120 milhões de aves foram abatidas. O que significa isso?
Vai faltar ovo. Não tem como. Houve um colapso no sistema produtivo de ovos nos Estados Unidos e em alguns outros países. Se essa gripe aviária, por exemplo, se ampliar no Brasil, nós vamos também ter um problema sério aqui dentro. São essas questões que a gente precisa colocar. O governo não tem como resolver isso.
E quanto ao preço da carne, como está o mercado lá fora?
O preço da carne também deverá subir. Hoje, os Estados Unidos estão com o menor rebanho bovino da história – e a previsão é de que serão necessários, no mínimo, três anos para recuperar isso. Houve muito abate de fêmeas, erros de políticas. O primeiro mandato do Trump foi um desastre para a agricultura americana. Por que? Porque ele tarifou a China. E o que a China fez? Pegou o produto sensível deles e embargou.
Aí os Estados Unidos perderam o mercado e o que aconteceu? Foi um desastre. Hoje, arroba da carne nos Estados Unidos está custando o dobro do que no Brasil. Você acha que eu vou conseguir comprar um quilo de bife dos Estados Unidos? Não, não vou. A gente tem de entender o que está acontecendo no mundo.
Esse aumento de tarifas é uma miopia do Trump. Já foi assim no primeiro mandato e isso favoreceu muito o Brasil
Como o sr. está vendo esse caso de gripe aviária que surgiu no Rio Grande do Sul e já levou à suspensão das importações de frango brasileiro por mais de 160 países?
Olha, é importante, para quem não está familiarizado com o agro, saber que esse é um risco que nós sempre vamos correr. Como eu falei, nos Estados Unidos, eles tiveram a sua gripe aviária e tiveram de abater 120 milhões de aves. O Brasil até agora era praticamente a última potência agrícola que não havia tido a influenza aviária, a gripe aviária. Então, era até meio previsível que, em algum momento, isso iria acontecer. No passado, a gente já teve. Essa gripe foi detectada em aves silvestres. Mas em aves de granja é a primeira vez.
Como o sr. avalia a ação do governo em relação à gripe aviária?
Eu acredito que o Brasil está atuando certo, porque você tem de fazer essas restrições sanitárias, tem de fazer um isolamento daquela área, para que isso não se propague. Neste ponto, o Ministério da Agricultura agiu de uma maneira muito rápida e a gente precisa continuar tomando essas medidas. Talvez, a grande lição aí, que eu comentei há pouco, seja essa falta de acordos comerciais do País. Por que? Porque muitos dos acordos sanitários que a gente tem são muito antigos e meio retrógrados.
O Brasil ainda tem acordos prevendo que, quando ocorre um surto do gênero, você dispara um gatilho que corta as exportações do país inteiro. Como são os acordos sanitários modernos? Quando você tem um foco de gripe aviária em Montenegro, no Rio Grande do Sul, só o município de Montenegro vai ser isolado. Ou, no máximo, o Estado do Rio Grande do Sul ficaria sem exportar. Mas o resto do País, que não tem contaminação, onde ainda não foi detectado o problema, fica liberado para exportar.
Agora, a necessidade de importação de alguns países é tão grande que, mesmo os acordos não prevendo isso, eles estão restringindo essas importações só ao município ou ao Estado do Rio Grande do Sul. Quem está no Paraná, no Mato Grosso, em Minas Gerais, vai poder continuar a exportar, tamanha a demanda e a necessidade existentes no mercado externo.
Para terminar, gostaria de falar sobre o aumento tarifário imposto pelo Trump aos parceiros comerciais dos Estados Unidos. Na sua avaliação, qual o efeito que isso pode ter para o agro brasileiro?
Antes de mais nada, eu sou um ferrenho defensor do livre comércio. O livre comércio é a principal ferramenta para a prosperidade. Restringir o livre comércio é como criar uma barreira de empobrecimento. Então, eu acho que esse aumento de tarifas é uma miopia do Trump. Já foi assim no primeiro mandato e isso favoreceu muito o Brasil. De forma geral, vejo uma oportunidade para o País, principalmente em função daquilo do que eu falei sobre a confiabilidade dos fornecedores.
É claro que o chinês agora está com a pulga atrás da orelha. O que o Partido Comunista Chinês está pensando dos Estados Unidos? Que eles não são confiáveis para fornecer comida e que vão ter de buscar alternativas – e estão buscando aqui no Brasil. É claro que isso pode afetar os preços internos, porque a gente vai exportar mais, mas de alguma maneira haverá uma acomodação. Num primeiro momento, porém, acredito que pode ajudar o agronegócio brasileiro, embora esse protecionismo crie uma imagem ruim a respeito do livre comércio. Não é por aí, com essa guerra comercial que o Trump tem desencadeado, que nós vamos ter prosperidade e melhoria de qualidade de vida em nível global (Estadão, 30/5/25)