30/01/2018

Índios em Roraima criam gado em fazendas 'herdadas' de ruralistas

Índios em Roraima criam gado em fazendas 'herdadas' de ruralistas

Para enfrentar a desnutrição e contrariar o rótulo de improdutivos, indígenas que vivem em Roraima criam gado e cultivam plantações em fazendas que, muitas vezes, "herdaram" de ruralistas da região.

Segundo o governo do Estado, cerca de 150 comunidades das terras indígenas de São Marcos e Raposa Serra do Sol possuem hoje um total de 120 mil cabeças de gado.

Os animais são consumidos pela população indígena e, em menor escala, vendidos para custear insumos agrícolas, tratamentos de saúde e cursos técnicos a seus membros.

A pecuária indígena remonta aos anos 1970, quando fazendeiros empregavam membros das comunidades locais.

Os vaqueiros indígenas gradualmente passaram a criar os próprios animais e, na última década, demarcações de terras indígenas levaram à remoção dos fazendeiros.

Se, de um lado, trouxe estabilidade, a delimitação das reservas, de outro, impôs restrições à caça e à pesca que um dia foram a fonte exclusiva de proteína animal das populações indígenas.

Com isso, comunidades se organizaram para assumir os pastos das antigas fazendas. Inicialmente receberam gado da Diocese de Roraima e da Funai (Fundação Nacional do Índio). Gradualmente, dividiram os rebanhos entre aldeias.

Em 2011, segundo o governo de Roraima, as comunidades indígenas criavam 20 mil cabeças de gado. Em 2014, o rebanho chegou a 80 mil e hoje se aproxima de 120 mil.

Metade (46%) do território de Roraima pertence aos 70 mil indígenas da região, agrupados em 465 comunidades.

"Essa pecuária reforça a identidade indígena porque é feita de forma comunitária e em harmonia com o jeito deles de viver, sem desmatamento, sem hormônio, antibiótico, apenas vacinas obrigatórias. Fazem criação de boi solto em capim nativo, uma atividade importante na segurança alimentar e na economia das comunidades", afirmou Ciro Campos, biólogo do Isa (Instituto Socioambiental), em Roraima.

A miscigenação, inevitável, trouxe hábitos dos brancos às comunidades, que tomam refrigerante, andam de moto e atualizam seus perfis em redes sociais. Para indigenistas, a modernização dos hábitos das comunidades não esvazia sua identidade.

SATANÁS

Na sexta-feira, 19 de janeiro, debaixo do sol do meio-dia, cerca de 20 índios marcavam bois, vacas e bezerros para dividi-los entre as 24 aldeias do Alto São Marcos na fazenda Xanadu.

Localizada em Pacaraima (RR), na fronteira com a Venezuela, a propriedade chegou à sua produtividade recorde em 2017, com 800 animais e mais de 300 bezerros.

Um aparelho de rádio tocava forró, crianças dormiam em redes rodeadas de moscas e a tuxaua (cacique) Leidimar Silva, 54, carregava seu celular na sede da fazenda, deixada pelo antigo proprietário.

"Financeiramente, mudou muito a nossa vida. Meu Deus, me lembro que a minha mãe mandava trocar uma goma ou beiju por leite na fazenda dos outros. Ia de cavalo, loooonge. Hoje a gente mesmo produz", comparou.
Silva não fala macuxi, a língua de sua etnia, mas arranha o espanhol e quer aprender inglês para potencializar o turismo em Xanadu.

Se a vida da líder indígena mudou em relação à da sua mãe, a terceira geração também evidencia novidades. A sua filha se mudou para o Rio, onde trabalha como figurinista em emissoras de TV.

"Os irmãos falam que é pacto com satanás", debochou a tuxaua para, então, voltar ao assunto de sua preocupação. A PEC (proposta de emenda à Constituição) 215, em tramitação, que libera o arrendamento de terras indígenas, é vista como ameaça pela comunidade.

"Querem exterminar nossas terras. Onde já se viu? Onde nós vamos botar nossos gados?", protestou.

O relator da medida, deputado Osmar Serraglio (MDB-PR), disse que "o discurso contra a PEC é ideológico, porque ela vai desestruturar a máfia de ONGs que recebem milhões e milhões de dólares, sem que se veja resultados".

Serraglio sustenta que "a PEC dá mecanismos para que indígenas, como nos Estados Unidos e na Austrália, evoluam. Eles não podem ser tratados como seres silvícolas".

Para a Funai, o direito assegurado aos índios de usufruto de terras indígenas estende-se à pecuária e à agricultura, da mesma forma que torna inconstitucional o arrendamento ou parcerias rurais em terras indígenas.

O órgão informou que há rebanhos indígenas também em comunidades em TO, MS, SC, MG, PE e BA.

"RURALISTA? NÃO"

A também tuxaua Maria Cristina Magalhães Peixoto, 51, mais tímida, fica desconcertada quando questionada se o gado fazia dos indígenas ruralistas. "Não sei, né? Pecuaristas, sim. E agricultores também", preferiu dizer.

Para o secretário de Estado do Índio de Roraima, Dilson Ingaricó, que acompanhou a reportagem na visita à fazenda, a pecuária não afeta a identidade das comunidades, uma vez que nem todos os membros se envolvem.

"Se não houvesse essas possibilidades, as comunidades não teriam como prosseguir a autossustentabilidade."

Conversando com as tuxauas, ele usou outro argumento em favor das fazendas. Leidimar Silva pedia assistência do governo para construir cercas. "Poxa, também somos eleitores desse povo, né?", disse.

Ingaricó defendeu que o povo indígena precisa ser criterioso em suas demandas. "Nem tudo o governo pode dar, e a gente não pode ficar só dependendo deles. Os políticos vêm e dizem que a gente só sabe pedir. Por que dizem isso? Porque a gente não apresenta o que faz", realçou.

Gerente da fazenda Xanadu por 12 anos, Valcir Peres, 66, disse que a pecuária é importante contraponto às "perdições da cidade". "O jovem que é dedicado à pecuária não tem por que fumar uma droga", sublinhou.

Da Xanadu sai doce de leite, coalhada, queijo, carne de sol e paçoca, que, em Roraima, é salgada e feita com carne. Com o couro animal se produz celas e laços.

O novo gerente da fazenda, Alichard Lima da Silva, 37, pretende informatizar a administração, mas sem equipará-la à agropecuária capitalista. "A gente está aqui para proteger o ambiente e garantir a subsistência", ponderou.

Se a fome no Alto São Marcos não é problema, em outras regiões de Roraima a realidade é distinta. Estudo feito pela indígena Secilita Ingaricó, da aldeia Ingaricó, mostra que a desnutrição aflige diversas comunidades na Raposa Serra do Sol.

"Falo para meus filhos, netos e bisnetos. Criando porcos, bovinos, ovinos, galinha caipira, ficaremos independentes dos karaiwa (não indígena)", disse à pesquisadora o tuxaua de Mapaé/Karumanbatëi, Leandro Mukuka (Folha de S.Paulo, 30/1/18)