18/04/2019

Inquérito desgasta gestão Toffoli e afasta Supremo do papel de moderador

Inquérito desgasta gestão Toffoli e afasta Supremo do papel de moderador

Legenda: Em março de 2019, Dias Toffoli anunciou a abertura de um inquérito para apurar fake news, ameaças e ofensas caluniosas, difamatórias e injuriosas a ministros do STF e seus familiares. A medida gerou descontentamento no Congresso e no Ministério Público 

 Há 7 meses à frente do STF, ministro enfrenta nova polêmica com decisão de investigar ofensas à corte, com críticas até de colegas.

Sete meses depois de assumir a presidência do Supremo Tribunal Federal, o ministro Dias Toffoli enfrenta desgaste interno por causa do inquérito aberto por ele para apurar fake news e ofensas aos integrantes da corte. Um cenário que o deixa diante da perspectiva de uma derrota particular em plenário.

A polêmica atingiu seu ápice nesta semana e pôs o STF no centro do noticiário, contrariando o discurso de posse de Toffoli de que ele faria a corte submergir e pacificaria a relação com outras instituições.

Nos bastidores, ministros se dizem preocupados com a onda de ataques nas redes sociais ao tribunal. Mas o meio empregado por Toffoli para combater os ataques —o inquérito aberto sem provocação de outro órgão e sem participação da Procuradoria-Geral da República— dividiu a corte.

O episódio de segunda (15), de censura a dois sites no âmbito desse inquérito, aprofundou o desgaste interno e pode levar o plenário a rever medidas tomadas por Toffoli e pelo ministro Alexandre de Moraes, que preside a investigação sobre fake news.

Alguns magistrados tentam se descolar do caso. Quando a investigação foi aberta, em março, houve quem apoiou publicamente a iniciativa, como Celso de Mello. Reservadamente, um magistrado disse que a situação o envergonha.

Já o ministro Marco Aurélio tem vocalizado as principais críticas. Para ele, desde que o inquérito foi iniciado, as normas não foram seguidas. Há duas semanas, o ministro ironizou o discurso de posse de Toffoli e disse que o submarino que faria o STF submergir "talvez esteja avariado".

Com a ordem de retirada de reportagens dos sites da revista Crusoé e O Antagonista, assessores de ministros apontam que Toffoli e Moraes tendem a ficar isolados nesse ponto. Os veículos censurados publicaram textos com uma menção a Toffoli feita pelo empresário e delator Marcelo Odebrecht em um email de 2007.

No email, Odebrecht pergunta a dois executivos da empreiteira: "Afinal vocês fecharam com o amigo do amigo de meu pai?". Não há menção a pagamentos ou irregularidades. Pessoas próximas a Toffoli dizem acreditar que o vazamento desse material neste momento teve o intuito de atacar a corte.

Na terça (16), a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, enfrentou o STF e, numa manifestação a Moraes, afirmou ter arquivado o inquérito. Quatro horas depois, o ministro rebateu afirmando que a medida da PGR não tinha respaldo legal.

A investigação foi prorrogada por 90 dias. Conforme a decisão, só depois desse prazo Dodge poderá ver o procedimento, que é sigiloso. Os termos duros usados pela procuradora-geral foram vistos como um aceno dela para os membros de sua carreira —a cinco meses do fim de seu mandato no comando do órgão.

Desde quando Toffoli abriu o inquérito, há a expectativa que procuradores que criticavam o Supremo nas redes sociais sejam alvo da apuração.

A PGR pode recorrer da decisão de Moraes que rejeitou o arquivamento. Eventual recurso deve ser analisado pelo plenário, composto pelos 11 ministros, mas pode demorar. A PGR informou que só é possível recorrer após ter conhecimento do que foi investigado. Além disso, para um caso ser apreciado no plenário, é preciso que Toffoli o inclua na pauta.

 A discussão também pode ir ao plenário por meio de processos movidos pela Rede e pela ANPR (Associação Nacional dos Procuradores da República), que sustentam que o inquérito fere o ordenamento jurídico.

O ministro sorteado para relatar esses processos foi Edson Fachin, que já pediu informações a Moraes sobre a investigação sigilosa.

O ministro aposentado do STF Carlos Ayres Britto afirmou que, se há ameaça contra integrantes do tribunal e suspeitas fundadas de que há uma orquestração nas redes sociais, o assunto é grave.

"Agora, há de ser combatido com fórmulas que o próprio direito brasileiro estabelece, como, por exemplo, o presidente do Supremo podendo representar ao Ministério Público para que ele apure, ou à própria PF para que ela abra inquérito", disse.

"A gente não pode deixar de fazer a distinção que está na Constituição: o Judiciário não instaura nem conduz por si mesmo investigação criminal, porque tenderia a comprometer a imparcialidade do julgamento. Mas ainda há tempo de o próprio plenário do Supremo, na primeira oportunidade que se lhe abrir, encarar tecnicamente o tema e colocar as coisas nos seus devidos lugares."

Para Ayres Britto, quando o próprio procurador-geral afirma que um caso deve ser arquivado, "não há o que fazer, é arquivar".

Há também em trâmite no Supremo uma reclamação formulada pelos advogados da Crusoé, que sustentam que a decisão monocrática (individual) de Moraes de censurar a revista contrariou um julgamento do plenário que, em 2009, consolidou a plena liberdade de imprensa. Ayres Britto foi o relator da ação (APDF 130) naquela ocasião.

"Liberdade de imprensa e democracia são gêmeas siamesas. [A decisão de censurar a revista] Causa certa preocupação, mas a ADPF 130 está aí à disposição de todos", afirmou o ministro aposentado à Folha.

A gestão de Toffoli à frente do Supremo buscou dar transparência à pauta de julgamentos, divulgando a agenda do plenário do primeiro semestre inteiro com antecedência, em dezembro passado.

No entanto, o tema mais aguardado —a deliberação final do plenário sobre a possibilidade de prender condenados em segunda instância—, que estava previsto para ser analisado no último dia 10, foi adiado por Toffoli.

Restaram outras questões polêmicas que mantiveram o STF nos holofotes, como a criminalização da homofobia —cujo julgamento será retomado em 23 de maio— e a decisão de remeter para a Justiça Eleitoral processos sobre crimes de corrupção —o que motivou críticas de procuradores, sobretudo da Lava Jato.

Foi durante a sessão que discutiu esse tema, em março, que Toffoli anunciou a abertura do inquérito das fake news e o entregou aos cuidados de Moraes. No decorrer daquela tarde, o ministro Gilmar Mendes chegou a chamar de cretinos os membros do Ministério Público que extrapolam suas funções e cometem irregularidades (Folha de S.Paulo, 18/4/19)


Ao encampar uma agenda, STF fragiliza imagem de imparcial e independente

Supremo se colocou nessa enrascada, mas ninguém pode abrir mão do tribunal.

Na onda da Operação Lava Jato, o Supremo Tribunal Federal adotou uma série de decisões assumidamente excepcionais: afastou presidentes da Câmara e do Senado de suas funções, alterou as regras para antecipação da execução da pena, prendeu senador em flagrante e impediu posse de ministro, censurou entrevista de candidato preso.

Essa agenda de moralização da política assumida pelo Supremo teve seu custo: a cada decisão excepcional, mais afastado ficava o tribunal do lastro jurídico que sustenta sua autoridade e sua legitimidade. Ao encampar uma agenda, fragilizou a imagem de imparcialidade e de independência do Judiciário.

O resultado está aí. O Supremo hoje tem um altíssimo custo para decidir: votos favoráveis à criminalização da homofobia viraram pedidos de impeachment de ministros, a definição da competência para julgar crimes comuns conexos aos eleitorais se transmutou em atos públicos contra o tribunal por todo país e o julgamento sobre prisão após condenação em segunda instância dificilmente será realizado por receio de apedrejamento do tribunal.

Agora, diante de uma crise sem precedentes que coloca em xeque o poder decisório do Supremo, a reação institucional foi ruim. Com a reputação desgastada após tantas decisões excepcionais, o tribunal decidiu por mais extravagância na instauração de um inquérito, que tramita sob sigilo, para apurar difamações contra o tribunal, seus ministros e até familiares.

É evidente que ministros podem --e devem-- agir se forem vítimas de crimes, mas isso deve se dar dentro dos parâmetros legais.

Está difícil encontrar alguém que apoie tal inquérito. Para começar, sua instauração mediante portaria pelo presidente do Supremo, Dias Toffoli, e a escolha de Alexandre de Moraes como relator são juridicamente questionáveis.

Pior, o inquérito transforma as supostas vítimas em investigadores e julgadores em causa própria. Isso tudo sem mencionar a indeterminação de seu objeto e decisões de censura a órgãos de imprensa. 

O Supremo está refém de suas más decisões e, acuado, assiste a alguns poucos, porém barulhentos, clamarem pelo seu fechamento. A quem interessaria um tribunal constitucional fraco? 

As recentes experiências que respondem a essa pergunta são assustadoras: aumentar ou diminuir número de ministros, aposentadorias compulsórias e fechamento de tribunal são artifícios implantados por governos não democráticos.

Na mesma linha, propostas que afrontam a Constituição, como a supressão de demarcação de terras indígenas, o desmonte das políticas de participação social e de proteção ambiental, a redução da idade penal e a censura de professores, dentre tantas outras, certamente se aproveitariam de um tribunal constitucional fragilizado. 

Não há dúvidas de que foi o próprio Supremo que se colocou nessa enrascada, mas nenhum de nós pode abrir mão do tribunal e da defesa incondicional que este deve fazer da Constituição. Não há saída que não passe pelo respeito à Constituição (Folha de S.Paulo, 18/4/19)