Inteligência artificial vai mudar todos os relacionamentos humanos
Para historiador, Google, Facebook e Amazon competem em revolução digital e redes sociais ficam arcaicas.
Quando descreveu os perigos da internet em seu primeiro livro há dez anos, Andrew Keen ficou conhecido como o anticristo do Vale do Silício, uma rara voz dissonante num momento em que o mundo parecia celebrar as maravilhas das redes sociais.
Em “O Culto do Amador”, o historiador que trocou seu Reino Unido natal pela meca do “big tech” na Califórnia, onde fundou uma série de start-ups que fracassaram, já falava na erosão da confiança em instituições que são pilares da sociedade moderna.
Ele previu a era das “fake news”, com a crise da mídia tradicional diante da ascensão da opinião de amadores na rede mundial, e o fim de certas experiências humanas, como a solidão e a privacidade, que desapareceriam num ambiente dado ao exibicionismo total.
Uma década depois, Keen aponta as consequências de um mundo inebriado pela internet em seu mais novo livro.
“How to Fix the Future”, recém-lançado nos Estados Unidos, descreve o quadro de medo e paranoia que domina a época atual e aponta a eleição de Donald Trump como fenômeno de um momento em que a crença cega na suposta transparência do ambiente virtual acabou gerando sociedades mais opacas.
Nesta entrevista, Keen comenta a crise de imagem do Vale do Silício, prevê um futuro controlado por inteligência artificial e aponta ameaças que o amor à tecnologia pode impulsionar, entre elas o levante de uma tecnocracia digital na China e de uma nova guerra fria causada por políticas digitais divergentes.
Folha - Seus livros e artigos são um alerta sobre os perigos da internet há uma década. Como vê a rede mundial hoje?
Andrew Keen - Tenho uma visão histórica sobre a revolução digital e a vejo como outras grandes mudanças tecnológicas e culturais do passado, como a Revolução Industrial e a Reforma Protestante, mas já não gosto mais de usar essa palavra internet.
A internet está em todos os lugares hoje em dia e provocou uma mudança profunda na forma como aprendemos, conversamos e administramos governos e os negócios.
É uma mudança tão forte quanto a Revolução Industrial, com a diferença que já não há crianças trabalhando em fábricas que cospem fumaça nem o surgimento de uma nova classe proletária.
Em vez disso, as empresas de tecnologia se tornaram as mais ricas e poderosas do planeta e estão todas concentradas na costa oeste dos Estados Unidos. Isso gerou outros níveis de riqueza e figuras como Jeff Bezos, o dono da Amazon que é talvez o homem mais rico da história.
O que está no horizonte como próxima fase dessa evolução?
Sempre tendemos a superestimar a velocidade com a qual a tecnologia pode mudar o mundo, mas acredito que nos próximos 15 anos a inteligência artificial vai mudar todas as indústrias e todos os relacionamentos humanos, por isso empresas como Google, Facebook e Amazon agora estão competindo para ver quem vai dominar essa área.
Mas acredito que pode até haver uma nova empresa, uma espécie de novo Google ou Amazon, que vai surgir e transformar todas as coisas.
A inteligência artificial já é uma realidade, não é só conversa ou uma propaganda vazia. E ela vai mudar a maneira em que pensamos sobre nós mesmos quando começar a substituir as pessoas em fábricas ou a servir fast food ou a trabalhar como médicos, advogados e até professores.
Os humanos podem se tornar obsoletos no futuro próximo?
Não penso isso, mas precisamos entender o que está acontecendo e desenvolver novas formas de agir. Na era das máquinas inteligentes e dos algoritmos, precisamos entender o que só os humanos ainda conseguem fazer.
Mas, enquanto essa reflexão não amadurece, acredita que a tecnologia e as redes sociais vão continuar a agravar o quadro de descrença em relação à política da atualidade descrito em seu livro mais recente?
A tecnologia não é o que levou Donald Trump ao poder ou o que está por trás da xenofobia. Mas a realidade é que a revolução digital criou outras formas de escassez. Há escassez de confiança e de capacidade de prestar atenção. Estamos confiando cada vez menos em todas as coisas.
Isso começou com a maneira como a internet gerou um fetiche em torno de amadores, minando nossa confiança em especialistas, curadores, profissionais e críticos. Foi a natureza democrática dessa tecnologia que nos levou a essa crise de confiança.
Trump é o presidente da internet. Ele representa os piores elementos das redes sociais, o narcisismo, a obsessão com o próprio ego, a inabilidade de ouvir. É o primeiro presidente antissocial.
Qual o antídoto para isso?
Mesmo que a tecnologia tenha provocado essa crise, acredito que nossa confiança possa ser reconstruída usando essa mesma tecnologia.
Seu livro dá exemplos bons e ruins de nações como Estônia e Cingapura, que estão ancorando seus governos em inovações tecnológicas. Quais são as vantagens e os perigos da ideia de país inteligente?
Nada é inevitável em relação à tecnologia, então tudo depende de como ela é usada. A Estônia é um bom exemplo de como um governo pode ser mais transparente com a tecnologia. Não é perfeito, mas está inspirando sistemas parecidos em todo o planeta.
O caso de Cingapura é mais preocupante porque há uma ausência de democracia, mas até o sistema paternalista deles parece funcionar melhor do que a democracia disfuncional que estamos vivendo agora nos Estados Unidos.
A China também está avançando nesse cenário e exerce grande controle sobre seus cidadãos censurando a internet e monitorando manifestações online. Como avalia isso?
O modelo de países inteligentes tem problemas, mas em todos eles há um grau de prestação de contas à sociedade que não existe na China.
Deveríamos estar bem mais preocupados com o caso chinês. Eles estão construindo um sistema orwelliano, em que o governo determina o destino das pessoas em termos de moradia, educação e privilégios sociais com base nos dados que tem sobre eles.
Eles estão se aproximando cada vez mais de um regime totalitário. É um pesadelo, uma tecnocracia digital onde os direitos individuais são ignorados.
No século 21, podemos ter uma nova guerra fria em que a base do conflito não será mais a diferença entre regimes econômicos e sim a maneira como cada país conduz as suas políticas digitais.
Mas mudanças como a decisão dos EUA de acabar com a neutralidade da rede não contribuem para um controle excessivo no resto do mundo?
Essa coisa de neutralidade da rede é uma ilusão completa, é “fake news” criada pela esquerda americana.
Eles sugerem que o perigo está no controle da rede por empresas como AT&T e Comcast, mas elas são minúsculas perto do Google e da Amazon.
Esse debate é um desperdício de tempo que só reflete o medo e a paranoia dessa época em que estamos vivendo.
A real ameaça à democracia está em como o Facebook e o Google se tornaram superpoderes globais enquanto o governo americano não funciona. Ninguém ali trabalha.
Você acredita que os EUA deveriam seguir os passos da União Europeia e impor mais restrições a essas empresas?
Os americanos sempre gostam de pensar que são mais avançados do que o resto do mundo, mas nesse ponto ficaram muito para trás em relação aos europeus. O século 21 já nos deu motivos para repensar as regras antitruste.
Haverá cada vez mais pressão para uma proteção maior de dados pessoais, como já existe na Europa. E penso que nas próximas eleições aqui os candidatos vão disputar cargos com plataformas anti-Vale do Silício da mesma forma que já atacaram Wall Street.
O “big tech” está vivendo o auge de uma crise de imagem?
O espírito dessa época é outro. A histeria em torno das redes sociais já se esgotou. Elas se tornam cada vez mais arcaicas e fora de moda.
Há dez anos eu era o único a dizer que elas enfraquecem a credibilidade e a verdade, enquanto hoje todos concordam com isso.
Elas prometiam transparência, mas nosso mundo só se tornou mais opaco e ninguém sabe o que essas empresas fazem com todos os nossos dados.
Os consumidores vão começar a peitar essas firmas. E o Google e o Facebook vão precisar aprender algumas lições com outras indústrias, como a dos automóveis, que se repensou para sobreviver.
A tecnologia é tão perigosa quanto o nosso amor por ela.
RAIO-X
Vida
Nasceu em Londres, em 1960, e hoje vive em Berkeley, nos Estados Unidos
Formação
Estudou história e ciências políticas na Universidade de Londres e na Universidade da Califórnia, em Berkeley
Carreira
Em 1995, ele fundou a Audiocafe.com, que fechou cinco anos depois. Trabalhou em empresas de tecnologia como Pulse 3D, SLO Media e Santa. Ele hoje faz palestras sobre a revolução digital e é autor de quatro livros, entre eles “O Culto do Amador” e “How to Fix the Future”
HOW TO FIX THE FUTURE
AUTOR Andrew Keen
EDITORA Atlantic Monthly Press
QUANTO US$ 16,30 (R$ 52,98), 288 págs (Folha de S.Paulo, 5/3/18)