Investidor está desistindo do Brasil sem solidez fiscal prometida
economista Marcos Lisboa Foto Reprodução Lucas Pricken STF
Proposta do imposto mínimo com isenção botou gasolina no fogo, afirma o economista.
Crítico do pacote de ajuste fiscal anunciado após meses de espera, o economista Marcos Lisboa tem o diagnóstico de que o investidor está desistindo do Brasil.
Lisboa afirma à Folha que o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) não entregou a solidez fiscal de longo prazo que prometeu. "Essa foi a aposta pesada dos investidores no começo do governo. Os números estão aí. Só que deu errado", diz.
Ex-secretário de Política Econômica no governo Lula 1, o economista contesta a avaliação de integrantes do governo de que há um movimento especulativo na reação negativa do mercado financeiro às medidas, que levou a cotação do dólar bater a marca história de R$ 6.
Para ele, houve um autoboicote do governo com um pacote tímido, medidas mal desenhadas e impacto marginal sobre o crescimento das despesas da Previdência Social.
Lisboa, que também é colunista da Folha, vê uma tentativa do governo de criar uma luta entre o bem e o mal ao incluir no pacote a isenção do Imposto de Renda até R$ 5.000 junto com a criação de um imposto para tributar os super-ricos.
"Em vez de enfrentar os problemas e dilemas com clareza, você tenta demonizar a diferença. Como se fosse um artifício retórico para garantir maior força para medidas mal pensadas", diz. "Parece mais uma proposta para acalmar as emoções de certos grupos, mas que só botaram gasolina no fogo", afirma.
O que achou da decisão do presidente Lula de incluir no pacote a isenção do IR para R$ 5.000 combinada à criação de imposto mínimo para os milionários?
Criou um ruído imenso ao somar uma proposta de isenção com uma medida não detalhada de aumento de tributação, mas que pelo anúncio preserva as distorções existentes e gera muita incerteza sobre a sua factibilidade. Depois de um mês de muita especulação, anúncios, vazamentos, dúvidas, ansiedade, pariu propostas incrivelmente tímidas, mal desenhadas em alguns casos, e promessas que já assistimos várias vezes que não se concretizaram. Uma medida grande, que gera muito mais obrigações fiscais no futuro. Então, o ruído que era grande ficou maior. Tudo isso vai comprometendo a perspectiva de médio prazo da economia do país.
Mas qual sua avaliação sobre o imposto mínimo?
Tem que separar o que é a intenção, as frases do anúncio, da sua implementação. Se faz promessas numa direção que parece correta. Só que quando se analisa os detalhes, as medidas com frequência são tiro no pé, inócuas ou dão efeitos contrários ao pretendido. Existem distorções tributárias no Brasil muito relevantes. Temos uma série de regimes tributários especiais que permitem que determinados grupos da população paguem menos tributos do que outros, inclusive grupos com renda muito maior.
Isso acontece, por exemplo, no Simples, no lucro presumido. Pode ter empresas, no lucro presumido, que faturam R$ 40 milhões, R$ 60 milhões por ano, em que quase tudo é renda dos seus sócios. Eles vão ser tributados perto de 15% da sua renda, enquanto o trabalhador com uma renda um pouco maior vai pagar 27,5%. A mesma coisa acontece no Simples. Não apenas grupos que ganham bem mais pagam bem menos, como várias empresas optam por malabarismos para a entrada dos regimes especiais exatamente pelo incentivo de pagar menos impostos. O agro também tem várias atividades que pagam muito menos tributos do que o resto da sociedade
Mas essas distorções não podem ser atacadas com o imposto mínimo?
Só que em vez de enfrentar a distorção de frente e entrar no detalhe, corrigi-las, o governo fez uma medida genérica que pega quem já paga muito imposto com quem não paga imposto. Fica tudo diluído no mar geral e você preserva as distorções. Tem problemas reais, só que em vez de enfrentar o problema de uma maneira estruturada, cuidadosa, detalhada, se dá uma aparente solução muito simples, mas que não corrige os problemas. Até porque, com uma medida genérica, os grupos localizados que se beneficiam das distorções tributárias atuais vão lutar para preservar seus benefícios.
Como avalia o impacto das medidas de corte de gastos?
O anúncio foi demasiadamente genérico. É muito difícil fazer estimativas. O governo não foi transparente. Mesmo que se consiga os números prometidos, o problema do Brasil é muito mais grave, R$ 30 bilhões num ano, R$ 40 bilhões no ano seguinte, estamos falando de um desequilíbrio de R$ 350 bilhões [nas contas do governo federal].
O que precisa ser feito?
São dois desafios. Na parte dos benefícios indexados ao salário mínimo, tem tido um crescimento muito forte do BPC e auxílio-doença. Além disso, tem o próprio envelhecimento da população, que leva a que os aposentados no Brasil cresçam perto de 5%. Com a proposta [de mudança da regra do pacote], em vez de ser perto de 3%, fica limitado ao teto de 2,5%. Mas, por outro lado, você tem esse grande crescimento dos beneficiários.
O gasto associado à Previdência, que é a principal despesa, tem crescido significativamente acima do arcabouço. As medidas anunciadas têm um impacto marginal sobre essa despesa. Isso leva à compressão das discricionárias, que é como o governo financia o seu dia a dia.
Se não fizer esses ajustes importantes, vai começar a paralisar a máquina pública. Tem uma tentativa de resolver distorções, concessões indevidas do BPC e de outros auxílios. É uma agenda de gestão que já devia ter incorporado. Isso está na pauta há bastante tempo e, até agora, os avanços foram pífios. Fica a dúvida se o governo tem os instrumentos de gestão para fazer essas correções.
O ministro Fernando Haddad prometeu entregar um pacote robusto e viu no dia do anúncio e também depois o dólar bater a marca histórica de R$ 6...
Tinha oportunidade, nesse momento bom, de fazer um ajuste consistente porque a economia está bem. O que eu esperava é que não tivesse que esperar as dificuldades aparecerem na atividade, no emprego, para fazer ajuste. Tem sido a nossa tradição. Nos momentos bons, a gente expande o gasto e faz programas que, em geral, fracassam, e aí depois tem que fazer o ajuste num momento ruim, de uma maneira socialmente mais cruel. Infelizmente a gente está desperdiçando a oportunidade.
O governo jogou fora a oportunidade de fazer uma reforma da renda mais profunda?
Certamente. A tributação sobre a renda no Brasil é complexa. Tem todo um aspecto técnico sobre as empresas de lucro real. É um tema difícil do mundo inteiro. Tem muitos problemas da maneira como o Estado arrecada das empresas de lucro real. Tem uma série de distorções entre o que a gente chama de lucro contábil com o lucro fiscal, que é o lucro tributável, que deveriam ser enfrentadas.
Mas isso passou batido. Não se resolve progressividade com uma regra como a que o governo propõe. Você acaba penalizando quem paga mais imposto, você preserva o benefício de quem paga pouco imposto. Mas tudo isso ficou para as calendas, nessa discussão, que, enfim, parece mais uma proposta para acalmar as emoções de certos grupos, mas que só botaram gasolina no fogo.
Qual o cálculo político do presidente do Lula com a medida? Eleição de 2026?
Política não é a minha praia.
Não tem como a economia ficar distante da política…
A política é central. Quem toma a decisão sobre as escolhas tem que ser a política. A preocupação que eu tenho é: será que essas medidas vão entregar o que prometem? Ou será que na economia elas vão gerar efeitos contrários aos pretendidos?
Qual a margem que Haddad terá para fazer o ajuste nos próximos dois anos do mandato?
O primeiro desafio da política econômica é garantir muita transparência. É claro que a escolha do caminho a ser seguido é uma escolha da política. A política é soberana. Mas cabe a equipe econômica garantir que a sociedade e o governo tenham os instrumentos para avaliar adequadamente onde está o problema, quais são os desafios, quais são as possíveis soluções técnicas para enfrentar esses problemas, e aí a política escolhe o caminho a ser seguido. Hoje, não estamos bem informados sobre os problemas.
Como assim?
No fim do dia, quando você olha o resultado disso, que é a dívida pública, ela vai crescer entre 12 e 14 pontos do PIB, dados os números atuais, nesse mandato. É um número muito alto. Num grau desse de incerteza, muita gente fala: ‘olha, melhor investir em outro lugar, porque esse país está muito confuso. Eles vão ter que mexer várias vezes na questão tributária’.
No pronunciamento do pacote, Haddad adotou um tom político que reforçou a posição de sucessor do presidente Lula. É difícil o equilíbrio do ministro da Fazenda com o político?
O Brasil já teve ministros da Fazenda muito competentes, que eram políticos. Isso não é uma questão. A questão é a maneira como você traz os problemas. Ter diagnósticos claros e transparentes. Não ter uma agenda ou uma retórica de tentar fulanizar e transformar tudo numa luta do bem contra o mal. Por que essa agenda? Ela não dá conta dos dilemas e problemas técnicos que eventualmente existem. Por outro, ela impede uma discussão mais serena.
Vê essa tentativa de agenda do bem e do mal no pacote anunciado?
Eu vejo. Por exemplo, na questão de corrigir as distorções tributárias. A saída anunciada, que ainda está muito obscura, faz isso. Ela trata grupos diferentes da mesma maneira. Soma a narrativa que tem grupos que não pagam imposto. Ela é parcialmente verdade e parcialmente falsa. Tem pessoas que faturam R$ 50 mil por mês com pagamentos de tributos na sua renda originária muito diferentes. Mas que vão ser igualmente penalizados pela maneira como a proposta está sendo feita.
Na discussão do Carf teve isso. Tem sido recorrente essa maneira de tratar os temas. Existe o bem e existe o mal. Em vez de enfrentar os problemas e dilemas com clareza, você tenta demonizar a diferença. Como se fosse um artifício retórico para garantir maior força para medidas mal pensadas.
O governo culpa a Faria Lima e a mídia pela alta do dólar…
Esses argumentos conspiratórios são tão frequentes quanto sem embasamento. Os investidores, sejam fundos de pensão, previdência, outros fundos que atraem recursos, apostaram muito no atual governo. Acreditaram que iria garantir uma solidez, e que, em razão disso, os juros iriam cair, o câmbio não iria subir. Essa foi a aposta pesada dos investidores no começo do governo. Os números estão aí. Só que deu errado. O governo não entregou solidez fiscal a longo prazo.
O resultado é que eles perderam muito dinheiro no Brasil. São perdas realmente muito impressionantes. Os investidores foram um pouco desistindo. Falaram: ‘olha, não vai dar certo. O governo não está entregando o que prometeu’. O futuro, em vez de estar menos incerto na questão das contas públicas, está ficando mais incerto. Na hora que os investidores ficam mais cautelosos, assustados com o que está acontecendo, o dólar e os juros de mercado sobem. O Tesouro tem tido muita dificuldade de vender papéis [mesmo] pagando taxas de juros muito altas.
Não há movimento especulativo contra o Brasil? Afinal, os números da economia real não são ruins.
Não estão ruins. Mas os investidores estão comprando papel para 2050. Ele precisa ter uma perspectiva de longo prazo sobre a saúde fiscal do país. Os investidores, quando compram o papel do Tesouro para daqui a 15 anos, estão preocupados não com hoje, estão preocupados com os próximos anos.
Ao contrário do que o governo imagina, ou da retórica, para achar vilão, para achar algum culpado. Isso é muito curioso no Brasil. Toma-se medidas equivocadas, elas não se sustentam, anunciam um futuro pior que o presente, e aí a culpa é do outro. Infelizmente, houve um autoboicote com medidas que, apesar do longo tempo de discussão, não garantem tranquilidade no futuro.
Qual a saída?
Ainda existe a oportunidade de corrigir os equívocos. A questão é: o governo quer? O último anúncio sinalizou que aparentemente o governo não quer, de fato, enfrentar o problema existente. Acho que tem um problema de diagnóstico em diversas frentes. A economia está bem no curto prazo. O desemprego está baixo, o consumo está alto. O problema é onde a gente está construindo a ponte para os próximos anos.
RAIO-X
Marcos Lisboa
Nasceu no Rio de Janeiro em agosto de 1964. Economista, ex-presidente do Insper, foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda no primeiro mandato de Lula (2003-2005). É Ph.D. em economia pela Universidade da Pensilvânia. Foi professor assistente de economia na FGV e na Universidade de Stanford (Folha, 2/12/24)