08/11/2021

“Investidor quer provas concretas de que cadeia pecuária é sustentável”

“Investidor quer provas concretas de que cadeia pecuária é sustentável”

Maria Lettini- diretora-geral da Fairr Initiative- FOTO - Broadcast Agro

Números, números, números. E provas concretas e auditadas de que a pecuária brasileira e as companhias ligadas ao setor estão, de fato, preservando o meio ambiente e atuando de maneira sustentável e sem desmatar florestas. Essas são as exigências de investidores para aplicarem recursos no agronegócio no Brasil, comenta a diretora-geral da Fairr Initiative, Maria Lettini (Foto), em entrevista exclusiva ao Broadcast Agro.

À Fairr, estão associados fundos de investimento do porte de Nordea, UBS, Pimco e Credit, entre outros, que detêm uma carteira global de no mínimo US$ 40 trilhões para aplicar em projetos - desde que com o carimbo da sustentabilidade. Anualmente, por exemplo, a Fairr Initiative publica o Coller Fairr Index, uma abrangente avaliação das maiores empresas globais de proteína animal sob os aspectos social, ambiental e de governança (ESG, na sigla em inglês), com o objetivo de orientar os investidores. Em dezembro, sairá nova edição, que inclui as brasileiras JBS, Marfrig, Minerva e BRF.

E, dia 8 agora, Lettini participa da COP-26, em Glasgow, Escócia, com uma palestra que abordará os efeitos das mudanças climáticas nos sistemas produtivos alimentares e vice-versa. Ao longo dessa entrevista, a diretora da Fairr reforça a necessidade de "mais ações do que palavras" por parte das empresas de proteína animal do Brasil. E também a necessidade de as empresas comprovarem o argumento de que não são responsáveis pelo avanço do desmatamento de florestas nativas.

Mesmo que o governo brasileiro esteja "na mira" por causa de problemas ambientais, Lettini comenta que os investidores têm separado o discurso deletério do presidente Jair Bolsonaro das iniciativas preservacionistas das empresas produtoras de carne. Mas, de novo, reforça que eles sempre exigirão critérios detalhados, ações e provas concretas de que o agronegócio está de fato preservando. A seguir, os principais trechos da entrevista.


Broadcast Agro: Conte um pouco sobre a palestra que você dará na COP-26, no dia 8 de novembro.

Maria Lettini: Minha palestra abordará um tema bastante atual, sobre os efeitos das mudanças climáticas nos sistemas produtivos alimentares e vice-versa. Ou seja, como a cadeia produtiva de alimentos causa impactos no clima e quais são suas consequências e vice-versa. Assim, a proposta dos investidores associados à Fairr Initiative é ajudar a transformar esse sistema alimentar, que pode provocar impactos no clima, para um mais sustentável e que também atenda a uma população crescente. Sob este aspecto, são necessários investimentos não só do setor privado, mas também do setor público. Outro tema a ser falado na minha palestra é que é importante, em sistemas produtivos, entender de fato qual o verdadeiro custo de produção; deve-se fazer a contabilidade correta dos custos embutidos na produção das lavouras e na pecuária, medir as externalidades, e este custo deve aparecer no produto, nas gôndolas dos supermercados.

Broadcast Agro: E como os investidores ligados à Fairr poderiam contribuir com isso?

Lettini:
 - É necessário estudar uma forma para fazer com que as finanças sejam os catalisadores das mudanças dos sistemas alimentares, a fim de torná-los mais saudáveis e sustentáveis. Nós, da Fairr, trazemos, então, diferentes vozes do sistema financeiro para endereçar esta questão, sem, contudo, deixar de lado o apoio necessário dos governos dos países. Eles também devem se engajar na proposta de uma "nova contabilidade" sobre o custo real dos alimentos e trazer, consigo, todos os agentes do sistema alimentar, desde produtores até indústrias produtoras de alimentos.

Broadcast Agro: Quando você cita a necessidade de participação do Poder Público, queria trazer esta questão para o cenário brasileiro. Temos um governo combatido no exterior por causa de questões ambientais, como queimadas e desmatamento na Amazônia. Por outro lado, temos, na iniciativa privada, grandes agroindústrias, como JBS, Marfrig, BRF, Minerva e outras, engajadas em tornar mais sustentáveis seus sistemas produtivos e neutralizar emissões de carbono. Gostaria de saber o que de fato chega "aos ouvidos" dos investidores no exterior: o governo negacionista ou as iniciativas ambientais dessas empresas? Os investidores fazem essa separação?

Lettini:
 Sim. Cada vez mais os investidores estão separando as empresas da forma como eles veem o atual governo no Brasil, mas isso só até um certo nível. No fim, devo dizer que as ações valem mais do que palavras. Tivemos, recentemente, muitos anúncios positivos, tanto de governos quanto de companhias do setor de proteína animal. Mas o que realmente as empresas precisam apresentar são planos de ação mais detalhados, com todos os esforços possíveis, para termos a certeza de que todas essas promessas são baseadas de fato em um plano concreto, para que possamos medir os progressos daqui para a frente. Devo dizer, além disso, que é sempre muito positivo e interessante ver as iniciativas das companhias. Mas o setor público também é essencial para criar um ambiente regulatório, que ajude na transição para uma cadeia alimentar mais sustentável.

Broadcast Agro: Além de planos detalhados e concretos, o que mais estaria ao alcance da indústria de proteína animal, sob o ponto de vista dos investidores?

Lettini:
 Como eu disse, é sempre muito importante as iniciativas em favor da sustentabilidade das cadeias alimentares por parte dessas indústrias. Por exemplo, quando as companhias que você citou dizem que não vão mais comprar gado de áreas desmatadas, elas criam uma mobilização positiva em toda a cadeia de fornecimento. Elas mobilizam não só os pecuaristas, mas também o Poder Público, que é responsável pelas regulamentações. Assim, temos de trabalhar os dois lados conjuntamente: o setor privado e o público. Quando a JBS, por exemplo, se compromete a não comprar gado de áreas com problemas socioambientais, ela deve ter, além de um suporte financeiro para fazer essa transição para uma cadeia mais sustentável, um lastro de regulamentação para essa transição. Isso nos daria a certeza de que as iniciativas são confiáveis: ou seja, com suporte do setor público, as iniciativas do setor privado seriam mais confiáveis.

Broadcast Agro: Um dos argumentos da indústria de proteína animal e do agronegócio brasileiro como um todo é que já há um bom suporte legal para exigir e garantir a preservação: o Código Florestal. E o setor pressiona, também, pela regularização fundiária, que deve ajudar a frear o desmatamento ilegal, sobretudo na Amazônia.

Lettini:
 Sim, eu acho que os investidores sabem que o Brasil tem um arcabouço legal interessante em relação ao meio ambiente. Ele é pioneiro na área ambiental, sob este aspecto. O problema, porém, é que, apesar da legislação, os investidores notam a devastação crescente das florestas no País, aí não tem jeito... Ano a ano, acompanhamos essas imagens da devastação. Então, é preciso uma forma mais agressiva para assegurar que a atividade pecuária não vai avançar mais sobre áreas de florestas. Um aspecto difícil de entender internacionalmente é por que o setor agropecuário brasileiro ainda precisa derrubar mais árvores se já há área suficiente a atividade.

Broadcast Agro: O setor, aqui no Brasil, luta para levar ao exterior o discurso de que o agronegócio industrial, que exporta commodities agrícolas, está "descolado" do desmatamento na Amazônia. O governo, por meio do Ministério da Agricultura, além do agronegócio como um todo, alega que o desmatamento ilegal no bioma é feito por grileiros e invasores de terras públicas, que derrubam árvores e promovem as queimadas. Esses argumentos estão, afinal, conseguindo chegar aos investidores? Eles enxergam esse "descolamento"?

Lettini:
 Acredito que os investidores estejam sabendo disso, desses argumentos. Mas, novamente, o que eles mais querem e exigem são garantias concretas de que não há essa ligação entre o agronegócio e o desmatamento. É necessário que as companhias de proteína animal ajam com honestidade; os investidores estão escutando os argumentos e querem saber como as empresas estão lidando com esse problema (do desmatamento) e como estão demonstrando que a situação está sob controle. Devo dizer que todos os produtores de carne bovina fizeram, para a elaboração do Índice Fairr, afirmações nesse estilo. Mas precisamos saber mais sobre os controles que eles estão fazendo, quem está auditando esses processos, para termos a certeza de que as informações que os investidores estão recebendo são, de fato, acuradas. Temos de ter a garantia que as companhias não estão contribuindo para o desmatamento e quais são as evidências de que não são elas as desmatadoras. A Amazônia é muito grande. Queremos provas disso.

Broadcast Agro: Essa auditoria deveria caber ao governo, na sua opinião?

Lettini:
 O governo precisa ter um papel, mas, neste ponto, para que os investidores tenham a certeza de que o desmatamento não está ligado ao agronegócio, deveria haver uma terceira parte fazendo algum tipo de controle, auditando processos. Uma terceira parte agindo entre o governo e as empresas.

Broadcast Agro: A Fairr Initiative faz exigências por redução nas emissões de gases do efeito estufa na pecuária. Gostaria de saber se há distinção, nos critérios da Fairr, entre pecuária de clima temperado, que tem um potencial muito maior de emissões, e a de clima tropical, que já comprovou, por meio de vários estudos, que pode passar de emissora a mitigadora de gases do efeito estufa, inclusive metano bovino, se bem manejada e feita em sistemas como integração lavoura-pecuária-floresta.

Lettini: 
No nosso ranking não há essa diferenciação. Ainda não existe esse tipo de comparação no mercado dos investidores. Ainda não conseguimos medir isso.

Broadcast Agro: Talvez por falta de comunicação do setor pecuário brasileiro junto aos investidores, porque há sistemas muito eficientes em sequestro de gases do efeito estufa no Brasil.

Lettini:
 Ok, mas ainda faltam informações globalmente e, provavelmente, estudos acadêmicos para que o mercado consiga quantificar essa diferença (entre pecuária tropical e temperada). E não só estudos, mas também as companhias precisam demonstrar o quanto essas técnicas estão conseguindo levar a cadeia produtiva como um todo para a redução ou a neutralidade de carbono. Creio que haja muitos estudos e isso é bastante positivo, mas o impacto deles na cadeia produtiva deve ser quantificado. E isso o mercado não conseguiu fazer globalmente, não só no Brasil. Ainda não temos notícia de quanto a pecuária tropical pode absorver ou mitigar na totalidade do sistema.

Broadcast Agro: Uma das defesas da Fairr Initiative é o aumento do consumo de proteínas vegetais, em detrimento da proteína animal. No caso do Brasil, que está entre os maiores exportadores de carnes do mundo, ele está voltado bastante para a China, cuja gigante classe média consome cada vez mais carne. E, no futuro, será a vez de Índia, Oriente Médio, Sudeste Asiático e África ascenderem e passarem a consumir mais carne. Tendo em vista que essas populações, inevitavelmente, vão querer mais proteína animal, não seria o caso de exigir, antes de aumentar o consumo de vegetais, uma pecuária sustentável de fato?

Lettini:
 O que nós vamos precisar é de uma cesta de opções, mas reduzindo a quantidade de proteína animal que se consome em mercados desenvolvidos e tentar fazer correções de rota nos mercados em desenvolvimento. Isso não significa proibir ninguém de comer carne, mas tentar diversificar a cesta alimentar e que ela envolva mais vegetais. Não deveríamos levar um sistema já distorcido para os novos mercados; e sim dar oportunidade para que eles comecem com um racional melhor. Devo reforçar que, no caso da proteína animal sustentável, isso custa mais caro, pois os preços sobem à medida que incorporamos as externalidades na produção daquela carne. E as externalidades da pecuária são várias. O sistema intensivo de produção de carnes favorece muito as mudanças climáticas; há um impacto ambiental muito forte. É um sistema que se apropria exageradamente dos recursos naturais, contribuindo com as mudanças climáticas e para um problema de risco alimentar global. O ponto é: temos de olhar para os próximos anos, sobre como produzir comida nutritiva num cenário global de mudanças climáticas. É neste ponto que vemos o papel do mercado, dos investidores, em ajudar a desenvolver a vida e os mercados de consumo nas economias emergentes (Broadcast, 5/11/21)