08/05/2025

Lula com Putin enfraquece coerência do Brasil na política internacional

Lula com Putin enfraquece coerência do Brasil na política internacional

LULA E PUTIN - Imagem Reprodução Blog Poder 360

Por Carlos Gustavo Poggio

 

País afirma neutralidade na guerra entre Rússia e Ucrânia, mas os sinais que emite indicam outra coisa.

 

Na política internacional, os gestos falam tanto quanto os tratados. A presença do presidente Lula (PT) em Moscou, ao lado de Vladimir Putin, durante o Dia da Vitória, em meio ao boicote da maior parte das democracias liberais, é um desses gestos que moldam percepções e alteram expectativas.

 

O Brasil afirma neutralidade no conflito entre Rússia e Ucrânia, mas os sinais que emite indicam outra coisa. Desde o início da guerra, o governo brasileiro buscou evitar alinhamentos formais. Recusou o envio de armas à Ucrânia, defendeu o diálogo com todas as partes e se colocou como potencial mediador.

 

Mas há limites para esse equilíbrio —e eles se tornam claros quando o comportamento do Brasil começa a se afastar dos princípios que historicamente defendeu.

 

A crise de coerência se aprofundou em 2023, quando o Tribunal Penal Internacional (TPI) emitiu um mandado de prisão contra Putin por crimes de guerra, pela deportação forçada de crianças ucranianas. O Brasil é signatário do Estatuto de Roma desde 2002 e teve papel importante na legitimação do tribunal.

 

Ao contrário das grandes potências militares, que se mantêm fora da jurisdição do TPI, o Brasil viu no tribunal uma ferramenta de equilíbrio e justiça internacional. Ainda assim, Lula declarou: "Se ele vier ao Brasil, não será preso de jeito nenhum. Quero muito estudar essa questão desse Tribunal Penal, porque os Estados Unidos não são signatários, a Rússia não é signatária —então por que o Brasil tem que ser?"

 

A pergunta ignora não só compromissos legais, mas o papel histórico que o Brasil buscou exercer na defesa de normas internacionais. A presença em Moscou reforça a imagem de um país que, na prática, afasta-se das democracias liberais e se aproxima de um grupo revisionista.

 

Evidentemente o revisionismo, por si só, não é um defeito. Críticas à ordem internacional vigente, marcada por desigualdades e hipocrisias, são legítimas. Mas o desafio é ir além da pauta negativa: não se trata apenas de rejeitar o que existe, e sim de propor algo melhor. Que tipo de ordem o Brasil deseja construir? Uma crítica sem alternativa se torna ruído. Um projeto construtivo exige coerência, clareza e aliados adequados.

 

Putin já deixou claro que defende uma nova ordem multipolar. Até aí, sem problemas: diversificar parcerias é benéfico ao Brasil. Mas a multipolaridade que interessa ao Kremlin remete à lógica do século 19, baseada na força e em esferas de influência. Ironicamente, a visão russa de ordem internacional hoje se alinha mais à lógica nacionalista e transacional promovida pelo trumpismo nos EUA do que ao modelo cooperativo historicamente defendido pelo Brasil.

 

A conjuntura atual, marcada pela erosão da ordem liberal, abre uma janela de oportunidade para o Brasil propor uma visão de ordem mais inclusiva, baseada em regras, cooperação multilateral e respeito ao direito internacional. Mas isso exige coerência. Ao marcar presença em Moscou nesse contexto, o Brasil corre o risco de chancelar um modelo de mundo com o qual não deveria se comprometer.

 

Talvez setores da diplomacia brasileira vejam nessa aproximação uma tentativa de ressuscitar a ideia de um novo "grupo de não alinhados", remetendo, em espírito, à Conferência de Bandung de 1955, quando líderes da Ásia e da África buscaram afirmar autonomia diante das pressões da Guerra Fria.

 

A conferência foi um marco da afirmação do chamado Sul Global, com ênfase em soberania e solidariedade entre países emergentes. Mas Moscou não é Bandung. A guerra na Ucrânia não é uma disputa entre blocos coloniais rivais, mas sim o caso de uma potência autoritária invadindo um país mais fraco e soberano. Nesse contexto, a impressão de apoio a regimes que desrespeitam normas basilares do direito internacional não fortalece a autonomia brasileira —enfraquece sua coerência.

 

A força da política externa brasileira sempre esteve em sua capacidade de articular interesses com valores, construindo pontes sem abrir mão de princípios. Para continuar relevante no debate global, o Brasil precisa projetar estabilidade, previsibilidade e compromisso com uma ordem baseada em regras —não apenas de independência, mas de direção. Em política internacional, os gestos de hoje moldam as oportunidades de amanhã (Carlos Gustavo Poggio, doutor em relações internacionais e especialista em política dos Estados Unidos, é autor de "O Pensamento Neoconservador em Política Externa nos Estados Unidos" (Unesp, 2010); Folha, 8/5/25)