Mercosul, UE e a pesquisa científica – Por José Goldemberg
Para competir, indústria local vai ter de procurar melhores tecnologias e métodos de produção.
Uma das consequências importantes do acordo firmado pelo Mercosul com a União Europeia (UE) será a de elevar a pesquisa científica e tecnológica do Brasil a um novo patamar. O acordo estabelece que dentro de dez a 15 anos as tarifas de importação de produtos que o Brasil importa da União Europeia, como máquinas, vinhos e cosméticos, serão praticamente eliminadas. O que isso significa é que os produtos importados ficarão mais baratos, competindo fortemente com os produzidos localmente. Hoje muitos deles só sobrevivem porque as tarifas de importação são elevadas, o que protege os produtores nacionais.
Para poderem competir as indústrias locais vão ter de procurar melhores tecnologias e métodos de produção, que se encontram nas universidades e nos institutos de pesquisas do País que foram preparadas para essas atividades, pelas seguintes razões:
• O apoio dado pelo governo de São Paulo às universidades públicas estaduais. O governo paulista dedica cerca de 10% dos recursos do ICMS às três universidades do Estado – USP, Unicamp e Unesp –, o que só ocorre em poucos países do mundo. O governo federal criou, ao longo dos anos, 68 universidades federais.
• O apoio dado pelo governo federal, inclusive no período militar, à pesquisa científica por meio da Finep e do BNDES, como parte de uma visão nacionalista e até de autarquia tecnológica em áreas estratégicas – nuclear, espacial, informática e outras. Essas visões se revelaram, de modo geral, irrealistas como se viu, exceto no caso do petróleo, em que a Universidade Federal do Rio de Janeiro desempenhou importante papel.
O sistema universitário público, no qual se concentra a pesquisa científica e tecnológica do País, beneficiou-se extraordinariamente desse apoio. Até 2014, 120 mil estudantes obtiveram o doutorado e cerca de 300 mil, o mestrado
A julgar pelo número de publicações, formação de mestres e doutores, o setor de ciência e tecnologia (C&T) do Brasil vai bastante bem, principalmente nas universidades do Estado de São Paulo e em algumas universidades federais, como as do Rio de Janeiro (UFRJ) e de Minas Gerais (UFMG), e em institutos de pesquisa, como Embrapa e Fiocruz.
Em outras palavras, o sistema de produção de C&T, essencialmente acadêmico, desenvolveu-se bem no Brasil. O que não se desenvolveu bem foi a demanda por conhecimentos científicos e tecnológicos, por causa da natureza do sistema produtivo, que foi protegido por altas tarifas alfandegárias.
Cerca de 90% dos pesquisadores do País estão nas universidades públicas e privadas. Apenas 10% dos doutores – cerca de 10 mil – se encontram em entidades empresariais, particularmente nas indústrias, que fazem pouco uso da grande capacidade científica que foi desenvolvida nas universidades. Em outras palavras, o sistema científico do País é essencialmente estatal. Nos países industrializados, como os Estados Unidos, cerca de dois terços da atividade de C&T está nas empresas, enquanto no Brasil menos de um terço corre fora do sistema estatal.
O que a experiência mostra é que é ingênua a ideia de que um forte sistema de ciência e tecnologia estatal impulsionaria sozinho a expansão da atividade industrial. Esta é, porém, a situação atual no Brasil, onde as universidades e os institutos produzem ciência de boa qualidade aguardando que a sociedade use sua competência.
Nos países industrializados a demanda por C&T é grande pela forte competição entre as indústrias, que procuram cientistas nas universidades e nos institutos para solucionar seus problemas ou os contratam para trabalharem para elas. Enquanto isso não for feito no Brasil, o setor industrial não se tornará mais competitivo.
A grande exceção é o setor agropecuário, em que as características climáticas favoráveis tiveram papel importante, além do apoio da capacidade técnica da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq-USP), do Instituto Agronômico de Campinas, da Embrapa e outros. O sucesso do setor de papel e celulose e o da produção de etanol da cana-de-açúcar são também notórios.
O acordo Mercosul-UE vai acelerar esse processo para muitos outros setores até agora protegidos por altas tarifas: as universidades públicas e os institutos de pesquisas, como o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), que dispõem de forte capacidade instalada, vão ser procurados pelas indústrias para resolverem os seus problemas, o que não se verifica hoje na escala desejável.
Há exemplos de que isso já foi feito no passado. O melhor deles talvez seja o do IPT, que em 1932, durante a Revolução Constitucionalista, foi utilizado intensamente na produção de armas para o Estado.
Para facilitar a colaboração das indústrias com os institutos e universidades públicas o governo federal já tem instrumentos financeiros, como a Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii). Criada em 2013, a Embrapii fomenta a inovação por meio de parcerias diretas: empresas que têm um problema a resolver contratam um grupo nas universidades ou nos institutos de pesquisas para fazê-lo. Os custos do projeto são divididos entre a Embrapii e a empresa. Em São Paulo, a Fapesp atua há anos criando centros de pesquisas em engenharia nas universidades em parceria com as indústrias.
O que vai acontecer também em muitos casos é que as empresas criarão centros de pesquisas próprios para desenvolver as tecnologias de que necessitam e contratarão pesquisadores e consultores das universidades e dos institutos, como já é em alguns setores. A pesquisa nesses centros garantirá às empresas os direitos de propriedade industrial.
O Brasil está em condições de dar um grande salto na modernização do seu sistema produtivo e na inserção nos mercados internacionais, expandindo suas exportações. O acordo com a União Europeia vai ajudar nesse processo (José Goldemberg, Professor Emérito da USP, foi ministro da Ciência e Tecnologia; O Estado de S.Paulo, 15/7/19)