Ministro defende aproveitar crise do coronavírus para 'passar a boiada'
Legenda: Ministro do Meio Ambiente durante participação em comissão no Senado, em 27 de março de 2019 Ueslei Marcelino/Reuters
Em reunião ministerial, Ricardo Salles disse que é o momento de aprovar reformas infralegais.
O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, defendeu em reunião ministerial no final de abril que o governo federal aproveite a crise sanitária do novo coronavírus para aprovar reformas infralegais, incluindo alterações ambientais.
As declarações do ministro foram registradas em vídeo do encontro gravado pelo Palácio do Planalto e cujo conteúdo foi disponibilizado nesta sexta-feira (22) pelo ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Celso de Mello.
Em seu discurso, Salles ressalta que é hora da edição de medidas de desregulamentação e simplificação, uma vez que os veículos de imprensa estão, neste momento, concentrados no combate à pandemia de Covid-19.
“Precisa ter um esforço nosso aqui enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só fala de Covid, e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas”, disse.
O ministro disse que também é uma oportunidade para fazer mudanças no Ministério da Agricultura e no Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Segundo ele, é hora de unir esforços para “dar de baciada”.
“O Meio Ambiente é o mais difícil de passar qualquer mudança infralegal em termos de instrução normativa e portaria, porque tudo que a gente faz é pau no Judiciário no dia seguinte”, afirmou.
No encontro, Salles ressaltou ainda que as mudanças pretendidas não precisam ser editadas em formato de projeto de lei, evitando, assim, que passem pelo Poder Legislativo.
“Não precisamos de Congresso, porque coisa que precisa de Congresso também, nesse fuzuê que está aí, nós não vamos conseguir aprovar. Agora, tem um monte de coisa que é só parecer e caneta”, afirmou.
O ministro ressaltou que é necessário deixar a AGU (Advocacia-Geral da União) de “stand by” caso as mudanças legais sejam contestadas juridicamente.
“Nós temos que estar com a artilharia da AGU preparada pra cada linha que a gente avançar. Tem uma lista enorme, em todos os ministérios que têm papel regulatório, para simplificar”, afirmou.
Após a divulgação do vídeo, Salles se pronunciou em rede social: "Sempre defendi desburocratizar e simplificar normas, em todas as áreas, com bom senso e tudo dentro da lei. O emaranhado de regras irracionais atrapalha investimentos, a geração de empregos e, portanto, o desenvolvimento sustentável no Brasil".
Luiza Lima, porta-voz de Políticas Públicas do Greenpeace Brasil, disse que a fala "deixa claro aquilo que a sociedade vem denunciando desde o primeiro dia de mandato deste governo, o projeto de desmantelamento das condições de proteção ambiental do país, um ministro de Meio Ambiente usa até a morte das vítimas da pandemia para passar violentamente essa política de destruição".
"A sociedade segue atenta, a Justiça Federal julgando seus atos, e os satélites que medem o aumento do desmatamento atestando o resultado de sua política. Bolsonaro ganhou as eleições, mas não ganhou um cheque em branco para acabar com a floresta e os povos indígenas, os ministros gostem ou não", afirmou em nota.
Na reunião, o presidente Jair Bolsonaro fez críticas ao Iphan e afirmou que ele vem atrapalhando a conclusão de obras no país. Ele citou como exemplo lojas da Havan, do empresário governista Luciano Hang. De acordo com Bolsonaro, o órgão federal interrompe projetos de infraestrutura, por exemplo, por causa de "cocô petrificado de índio".
"O Iphan para qualquer obra do Brasil, como para a do Luciano Hang. Enquanto tá lá um cocô petrificado de índio, para a obra, pô! Para a obra. O que que tem que fazer? Alguém do IPHAN que resolva o assunto, né?", disse.
A WWF-Brasil, em nota, expressou indignação pelas falas do ministro, que evidenciariam, segundo a ONG, "estratégia de destruição do arcabouço legal de proteção ao meio ambiente no Brasil".
A entidade afirma que não é surpresa que Salles venha trabalhando para "fragilizar as regras e as instituições" de defesa ambiental e que o ministro age contra os interesses nacionais.
"Apesar disso, choca constatar sua intenção de aproveitar a maior tragédia econômica e sanitária em muitas gerações, uma pandemia que já resultou em dezenas de milhares de vidas perdidas, para, em suas palavras, 'passar a boiada'", diz, em nota a WWF-Brasil.
O Observatório do Clima, organização que conta com a participação de dezenas de entidades ambientais, afirmou que Salles está "não apenas disposto a desmontar os regramentos da própria pasta, mas conclamando todo o governo a fazer o mesmo e pedindo proteção da AGU".
"Esperamos que Ministério Público federal, STF e Congresso tomem medidas imediatas para o afastamento do ministro Ricardo Salles. Ao tramar dolosamente contra a própria pasta, demonstra agir com desvio de finalidade", diz o Observatório do Clima, em nota (Folha de S.Paulo, 24/5/20)
Salles errou previsão e teve decisões questionadas por imprensa, MPF e Justiça
Ana Carolina Amaral
ANÁLISE – A estratégia revelada pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, durante a reunião ministerial ocorrida em 22 de abril, mostrou-se, ao longo de um mês, fracassada.
“Precisa ter um esforço nosso aqui enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só fala de Covid, e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas”, disse Salles na reunião.
Diferente do que previra ao propor o despacho de medidas ‘em baciada’, Salles teve suas decisões questionadas pela imprensa, pelo Ministério Público Federal (MPF) e pela Justiça durante a pandemia.
Um mês depois da reunião ministerial, no último dia 21 uma decisão da Justiça Federal passou a obrigar órgãos do Ministério do Meio Ambiente a fiscalizar os dez pontos mais críticos da Amazônia – ou seja, a cumprir uma missão institucional.
A decisão de tutela antecipada foi dada pela juíza federal Jaiza Maria Pinto Fraxe, da 7ª Vara Federal Ambiental e Agrária do Amazonas, a pedido da força-tarefa Amazônia do Ministério Público Federal, e impõe pena de multa diária ao governo por descumprimento da obrigação.
Entre os motivos citados pela juíza para a decisão, está o atrelamento da ação de desmatadores à transmissão do coronavírus a comunidades remotas na Amazônia.
Ao citar a pandemia causada pela Covid-19 na reunião ministerial, no entanto, Salles não expressou qualquer preocupação do seu ministério para a contenção da doença. Pelo contrário, enxergou o momento como oportunidade para desregulamentação da proteção ambiental.
Embora a franqueza do ministro possa ter chocado uma grande parte do público-geral, tal esperteza não foi novidade alguma para quem acompanha a condução do Ministério do Meio Ambiente.
O ministro chegou a reconhecer na reunião que sua então recente decisão de “simplificação da lei da mata atlântica” – na prática, a anistia a desmatadores – já estava sendo questionada nos jornais. “Então pra isso nós temos que tá com a artilharia da AGU preparada”, disse.
Embora Salles estivesse respaldado por parecer da AGU, o Ministério Público Federal questionou a decisão, pediu à Justiça a anulação da anistia e recomendou a órgãos estaduais de fiscalização ambiental que não seguisse a orientação do ministério.
Em São Paulo, o governador João Doria disse a ambientalistas reunidos em seu conselho que a decisão de Salles não valeria no estado, que continuaria seguindo a legislação específica para a mata atlântica.
“Agora tem um monte de coisa que é só parecer, caneta, parecer, caneta. Sem parecer também não tem caneta, porque dar uma canetada sem parecer é cana”, havia dito Salles na reunião.
Mesmo sob a emergência de uma pandemia, a realidade democrática mostra que não basta parecer.
Na última semana, um decreto transferiu do Meio Ambiente para a Agricultura a competência de formular estratégias e programas para a gestão de florestas públicas. No dia seguinte, o PSOL propôs ao Congresso sustar os efeitos da medida, cujas brechas dariam margem para a legalização da grilagem.
A tentativa de legalização da grilagem foi, aliás, a maior e mais barulhenta derrota ambiental do governo durante a pandemia.
A proposta rachou a bancada ruralista ao passo em que conseguiu a desaprovação dos mais diversos atores da sociedade, para muito além do ambientalismo.
O texto foi alvo de contestação de senadores, do Ministério Público Federal, de empresas globais, de parlamentares europeus e de artistas como Caetano Veloso, Bruno Gagliasso e até Anitta, que fez lives com deputados e mobilizou suas redes sociais contra o projeto.
A perseguição a servidores também não passou despercebida. Este blog antecipou que o governo poderia exonerar dois coordenadores de fiscalização do Ibama após uma operação exitosa contra garimpo na Amazônia exibida pelo Fantástico.
As exonerações, publicadas no Diário Oficial na semana seguinte, não deixam margem para outra justificativa que não a retaliação, alertada em nota da Associação dos Servidores de Meio Ambiente (Ascema). O MPF, através de inquérito civil, investiga as circunstâncias das exonerações.
“O general Mourão tem feito aí os trabalhos preparatórios para que a gente possa entrar nesse assunto da Amazônia um pouco mais calçado”, havia dito Salles durante a reunião.
Não passou batido, no entanto, o nível superficial do calçamento, que subordinou o Ibama às Forças Armadas e resultou em uma operação ‘para inglês ver’, como a Folha revelou na reportagem “Exército ignora Ibama, mobiliza 97 agentes e faz vistoria sem punição“.
Salles também aproveitou a pandemia para fazer uma reforma administrativa no ICMBio, órgão responsável pela gestão das unidades de conservação no país.
A mudança exonerou gestores especializados e centralizou a administração das unidades de conservação através de cargos ocupados por militares. Como resultado imediato, o órgão obteve uma recomendação do MPF para que anulasse as exonerações. Um inquérito civil público investiga os prejuízos da medida para a conservação do mico-leão-dourado.
“Tudo que a gente faz é pau no Judiciário, no dia seguinte”, havia dito Salles na reunião de 22 de abril. Acertou na leitura. Errou ao esperar ser aliviado pela pandemia.
Talvez Salles tivesse mais sucesso na sua empreitada de desmonte das políticas ambientais se o Brasil ainda não tivesse conhecimento das suas intenções, que lhe renderam apelidos como “antiministro” e “ministro da destruição do meio ambiente” ao longo do ano passado, entre uma sequência de crises ambientais ora desdenhadas, ora mal administradas.
Apesar dos justificáveis pedidos de impeachment de Salles, que de forma flagrante trabalha contra os interesses da pasta que comanda, uma eventual troca do ministro não deve acompanhar mudança no projeto, desenhado ainda durante a campanha eleitoral de Bolsonaro.
Salles é competente na busca de cumprir o projeto do seu chefe. O que o atrapalha é que vivemos em uma democracia (Folha de S.Paulo, 23/5/20)
“Ministro Ricardo Salles age contra os interesses nacionais”
Nota WWF-Brasil
“O WWF-Brasil vem a público expressar sua indignação com a estratégia de destruição do arcabouço legal de proteção ao meio ambiente no Brasil evidenciada pela fala do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, durante reunião ministerial realizada no dia 22 de abril e divulgada na tarde desta sexta-feira, 22 de maio.
Não é surpresa que o Ministro Ricardo Salles venha trabalhando, desde o início de seu mandato, para fragilizar as regras e as instituições criadas para defender nosso patrimônio ambiental. Não por acaso 2019 foi o ano com maior desmatamento na Amazônia em uma década, e os números deste ano mostram que vamos superar essa marca. É notória a paralisia administrativa em seu ministério e nos órgãos a ele associados. Apesar disso, choca constatar sua intenção de aproveitar a maior tragédia econômica e sanitária em muitas gerações, uma pandemia que já resultou em dezenas de milhares de vidas perdidas, para, em suas palavras, 'passar a boiada'.
A fala do Ministro Ricardo Salles expõe sua consciência de que o que está propondo é ilegal, e que portanto se ressente da ameaça que a Justiça pode trazer às suas intenções. Expõe que age contra os interesses nacionais, na surdina, alheio à uma ampla discussão que abarque os anseios da sociedade.
O Brasil precisa de um ministro à altura da importância que o Meio Ambiente tem para o país. É imprescindível que as devidas providências legais sejam aplicadas”
Passar a boiada quer dizer atualizar normas de todos os ministérios, diz Salles
Legenda: Salles foi condenado em primeira instância pelo Tribunal de Justiça de SP por beneficiar empresários ligados à Fiesp quando foi secretário estadual do Meio Ambiente na gestão Geraldo Alckmin (Rede Brasil Atual, 5/3/20)
Ministro do Meio Ambiente negou à Folha que a frase se referia a flexibilização de normas ambientais.
O ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente) disse neste sábado (23) que foi mal interpretado e se referia à atualização de normas de toda a Esplanada quando usou a expressão "ir passando a boiada".
À Folha ele negou que a frase fazia referência a eventual flexibilização de normas ambientais para avanço do agronegócio. Segundo Salles, as declarações na reunião ministerial foram tiradas de contexto.
"[Ir passando a boiada é] No sentido de que tem muitas normas em todos aqueles ministérios. Eu falei isso: todos os ministérios. Não estava falando só do meu", disse.
"Talvez a expressão 'passando a boiada', claro que tirada de contexto, pode dar uma impressão de uma coisa, mas o que queria dizer é que tem muita coisa para fazer."
Na sexta-feira (22), o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Celso de Mello autorizou a divulgação da maior parte do conteúdo de vídeo gravado pelo Palácio do Planalto no dia 22 de abril.
A gravação consta de inquérito que apura suposta interferência de Bolsonaro na Polícia Federal.
A acusação foi feita pelo ex-ministro Sergio Moro (Justiça), segundo o qual o vídeo do encontro comprovaria a acusação de que o presidente queria proteger a sua família.
Na reunião, Salles defendeu que se aproveitasse da pandemia do coronavírus para aprovar reformas infralegais, inclusive em sua pasta.
Ele ressaltou que é hora da edição de medidas de desregulamentação e simplificação, uma vez que a imprensa está, neste momento, concentrada no combate à Covid-19.
"Precisa ter um esforço nosso aqui enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só fala de Covid, e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas", afirmou na reunião.
Neste sábado, Salles disse que o comentário era destinado a todos os ministros presentes no sentido de diminuir normas que criam "burocracia", "retrabalho" e "ineficiência".
Segundo ele, este é o momento de revisão. "Muitos ministérios, incluindo o meu, estão em trabalho remoto. E a pessoa têm tempo para fazer isso. Foi isso o que eu quis dizer", afirmou.
O ministro disse ainda que usou o termo tranquilidade para fazer as mudanças enquanto a imprensa se dedica à cobertura da pandemia no sentido de evitar "polêmica gigantesca".
"De fato, tudo o que se faz neste governo em termos de mudança de regras regulatórias é motivo de altíssimo debate, politização e polêmica", afirmou.
De acordo com Salles, a imprensa deve tratar dos temas ambientais, mas pediu "uma discussão mais técnica e mais sóbria". "E não é muitas vezes o que a gente vê."
Tanto "ir passando a boiada" como "dar de baciada", segundo o ministro, são expressões para acelerar a atualização das normas.
"[Dar de baciada] É o sinônimo de passar boiada. Baciada significa fazer bastante. Fazer um monte de mudanças que são necessárias", disse.
O ministrou afirmou que em pouco mais de dois anos de governo Bolsonaro há ainda uma "lista interminável" de ajustes a serem feitos.
"Quando você fala em 'dar de baciada" é que tem de fazer logo. Fazer de uma vez."
Questionado sobre a atualização de regras ao largo do Congresso, o ministro destacou que tratou de normas infralegais porque deputados e senadores não fecham consenso em questões legislativas.
Ele negou que essas mudanças abram margem para abusos pelo Poder Executivo e minimizou críticas de entidades ambientais às suas declarações durante a reunião.
"Tudo o que a gente faz eles criticam. Então, não tem nada do que eu faça ou do que eu diga que eles não critiquem. Então, vejo com naturalidade. É o papel deles", afirmou.
Para o ministro do Meio Ambiente, o vídeo da reunião não devia ter sido divulgado, por se tratar de uma reunião que trata de temas de governo.
"Ao fazê-lo, você distorce muitas coisas que eram para ser faladas em privado, ali entre os ministros. Mas o principal ponto para mim, o resultado da divulgação da reunião, foi a comprovação de que não havia os crimes e as condutas indevidas que foram imputadas ao presidente", disse.
Sobre a repercussão do vídeo, Salles afirmou que o Brasil é um país democrático e as pessoas podem se manifestar.
"O que me parece em certa medida ruim é que algumas coberturas de imprensa cortaram, editaram e manipularam o que eu falei", disse.
"Quando você torna uma reunião pública, sem a devida contextualização, as interpretações nem sempre refletem o objetivo daquela conversa", emendou (Folha de S.Paulo, 24/5/20)