MT: Soja de fazendas com desmate ilegal é exportada para UE e China
Legenda: Bombeiros combatem incêndio em Mato Grosso, em 2019 - Amanda Perobelli/Reuters
Pesquisa indica que 20% das importações do grão pelo bloco no Mato Grosso vem de fazendas com desmate ilegal.
Cerca de 20% das importações de soja que a União Europeia e que a China fazem de Mato Grosso, maior exportador do produto no Brasil, são indicadas como provenientes de fazendas com desmatamento ilegal. Predomina a derrubada irregular de vegetação nativa, tanto de Amazônia quanto de cerrado e Pantanal, nas áreas produtoras de soja do estado, com 95% de desmate ilegal, ou seja, sem autorização.
Os dados divulgados nesta quinta (11) foram revelados por pesquisa desenvolvida pela iniciativa Trase, que busca dar transparência para cadeias de produção de commodities, e as ONGs ICV (Instituto Centro de Vida) e Imaflora.
A pesquisa aponta que, entre 2012 e 2017, cerca de 27% do desmatamento em Mato Grosso —que é majoritariamente ilegal— ocorreu em áreas com plantação de soja, principalmente em médias e grandes propriedades.
Os pesquisadores também encontraram grande concentração da devastação, com 80% registrada em somente 400 fazendas, o que representa só 2% das propriedades rurais do estado.
“Esses poucos e grandes proprietários podem estar danificando a imagem de um setor”, afirma André Vasconcelos, pesquisador da Trase.
A área destruída ilegalmente em fazendas de soja em Mato Grosso chega a 1.639.607 hectares (entre 2012 e 2017) e acaba por revelar os problemas e limitações da moratória da soja, acordo que começou em 2006 e que visa impedir a comercialização e financiamento de soja produzida em áreas amazônicas que foram desmatadas a partir de julho de 2008.
O impacto da moratória na redução do desmatamento na Amazônia é claro, diz Vasconcelos, mas ainda há brechas que levam à contaminação da cadeia produtiva de soja.
A moratória só diz respeito à produção em áreas diretamente desmatadas de forma ilegal na Amazônia. Ou seja, o desmate para plantio de soja em outros biomas não entra na conta, o que é apontado por pesquisadores como um risco para o cerrado, por exemplo, que têm níveis de desmatamento tão elevados quanto a Amazônia, mas área significativamente menor e com menos regiões protegidas.
A análise das entidades, por sinal, mostra um desmatamento ilegal maior no cerrado (866.469 hectares) do que na Amazônia (615.114 hectares).
Além disso, áreas amazônicas que são ilegalmente desmatadas dentro de uma fazenda produtora de soja, mas que não são usadas diretamente para o plantio do grão não são consideradas pela moratória.
"É esperado que o comprador e investidor se preocupem com o fornecedor, com a fazenda, como um todo, não só a área destinada ao cultivo de soja. Faz parte da mesma gestão. Como se, em uma empresa, você olhasse se apenas um setor estivesse em conformidade legal e se esquecesse dos outros", diz Paula Bernasconi, coordenadora do programa de incentivos econômicos do ICV. "O que importa é que a propriedade como um todo siga as regras."
Bernasconi cita o Protocolo Verde dos Grãos, iniciativa do Pará, como exemplo para ampliação do escopo de análise de irregularidades em imóveis rurais.
Segundo o estudo, foram encontrados 106 mil hectares de desmatamento ilegal de floresta amazônica em fazendas de soja em Mato Grosso, áreas que, pelo menos até 2017, não haviam sido transformadas em plantações de soja. Além disso, outros 24 mil hectares foram desmatados e transformados em áreas de plantação de soja.
A pesquisadora do ICV afirma que, pelo comprometimento do setor com a sustentabilidade e com os resultados positivos da moratória da soja, esperava-se um padrão diferente. "Infelizmente a proporção da ilegalidade se mostrou parecida com o que enxergamos para o resto do estado, a soja não tem uma situação melhor."
“O mercado europeu e chinês chancelado pela moratória na verdade pode estar associado a desmatamento ilegal”, diz Vasconcelos. “O mercado chinês está começando a se interessar pela sustentabilidade, e a legalidade é uma coisa com a qual eles se preocupam.”
As ilegalidades na cadeia da soja têm ainda uma peculiaridade. Grãos derivados de diferentes produtores são misturados para estocagem. Com isso, soja produzida em uma fazenda com desmatamento ilegal pode acabar se misturando a produtos de áreas que respeitam a legislação ambiental, o que acaba contaminando a cadeia.
Os pesquisadores estimam que 81% da soja produzida em fazendas com desmatamento ilegal em Mato Grosso foi exportada.
A ligação de produtos brasileiros com a destruição da Amazônia e a arranhada imagem ambiental do país no exterior já têm gerado repercussões econômicas, principalmente para negociações com países europeus.
No início do mês, o acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia sofreu mais uma rejeição política por um país europeu, com a maioria do Parlamento holandês passando uma moção contra a ratificação. A ideia de parlamentares europeus é que o pacto abre o mercado da Europa para produtos agropecuários obtidos à custa da destruição do ambiente.
As críticas europeias contra a política ambiental do Brasil são fortes nos países com setores agrícolas com pressão política grande, como França, Irlanda e regiões da Bélgica, e na Áustria.
Em Mato Grosso, o desmatamento ilegal (que representa 97% de toda a derrubada de vegetação no estado) se mantém em níveis estáveis entre 2012 e 2017.
“O produtor sente que não vai ser punido pelo governo e pelos órgãos competentes e opta por ir pelo caminho ilegal”, diz o especialista da Trase, que demonstra preocupação com a possibilidade de crescimento do desmate ante o comportamento do governo atual na questão ambiental.
Bernasconi afirma que o levantamento feito só é possível graças a uma maior transparência de dados em Mato Grosso, que disponibiliza a geolocalização das autorizações para derrubada de mata, ou seja, é possível verificar se uma área derrubada tinha permissão para tal. Isso significa que o problema identificado no estado não é um problema só dele, podendo ocorrer em outras unidades federativas que não tornam públicos seus dados.
A especialista também afirma que é necessário haver transparência e divulgação dos proprietários rurais presentes na lista de descumprimento da moratória da soja, o que não ocorre atualmente. "A imagem do setor e do Brasil estão constantemente sob escrutínio externo. Quanto maior a transparência expondo os não-conformes, maior a tranquilidade de um investidor e dos compradores."
Tal aumento já é perceptível pelas informações mais recentes e consolidados do Prodes, programa do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) que mede a taxa anual de desmatamento da Amazônia. A devastação do bioma em Mato Grosso aumentou cerca de 14% entre 2018 e 2019 (dados que levam em conta o período de agosto de 2018 a julho de 2019, ou seja, o início do governo Bolsonaro).
O desmatamento da Amazônia em 2019 bateu o recorde da última década, com mais de 10 mil km² devastados.
Procurada pela reportagem, a Abiove (Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais) contesta a interpretação de que 20% das importações do grão por China e União Europeia no Mato Grosso vem de fazendas com desmate ilegal.
A associação diz que o "estudo avaliou a evolução do desmatamento ilegal para o período de 2012 a 2017 e associou o número ao volume produzido em 2017. A metodologia deveria ter calculado a proporção em relação ao volume total produzido de 2012 a 2017, o que resultaria numa proporção muito menor."
Segundo Bernasconi, contudo, a afirmação está incorreta. "Olhamos a área cultivada em 2017, não o volume, para identificar quais são as fazendas de soja e quais não são", diz a especialista. "O desmatamento, uma vez que ocorre, é irreparável, portanto é um dano cumulativo na fazenda. A produção naturalmente se repete por vários anos em uma mesma área, então não podemos associá-la de forma proporcional ao desmatamento, que é impossível se repetir a curto prazo."
A Abiove também afirma que a moratória da soja garante que "existe risco zero do envio de soja de área desmatada (legal ou ilegal) deste bioma para mercados internacionais" e que "é especifica para o monitoramento da cadeia produtiva da soja", e, portanto, não responde por outras atividades, mesmo que essas ocorram em fazendas de produção de soja.
"Defender uma mudança na política, com a inclusão de outros papéis à iniciativa, como propõe o estudo, pode acarretar em um retrocesso do que hoje é feito por meio da Moratória e que é reconhecido em todo mundo", diz a Abiove, em nota.
Sobre o cerrado, a associação diz que lidera grupos de trabalho em busca de solução para conter o desmatamento e que faz o acompanhamento da expansão da soja plantada em área desmatada no bioma desde 2014 e que os dados apontariam queda na destruição.
"Além disso, o estudo é explícito em dizer que 'quase 20% dessas importações podem ter vindo de fazendas onde ocorreu desmatamento ilegal'. A Folha de S.Paulo, portanto, não deveria ter feito uma afirmação sobre uma informação que o próprio estudo coloca, no máximo, como possível", diz a associação.
A Folha tentou contato com a Sema/MT (Secretaria de Estado de Meio Ambiente de Mato Grosso), mas não obteve resposta até o momento.
A reportagem também não teve sucesso na tentativa de contato com a Aprosoja (Associação Brasileiras dos Produtores de Soja). A associação vem defendendo o fim da moratória da soja (Folha de S.Paulo, 12/6/20)