19/12/2022

Nações ricas agem como grileiros da atmosfera que pertence a todos nós

Nações ricas agem como grileiros da atmosfera que pertence a todos nós
LIXO Foto Blog Projeto Um Milhar

Por Candido Bracher

Novo governo, do qual se espera uma 'grande virada' ambiental, tem ainda o desafio de articular governança climática global.

Uma fábula de Esopo, traduzida e adaptada em diversas línguas e culturas desde a Antiguidade, narra o desafio lançado ao sol, pelo vento, para determinar quem seria o mais forte. Definem entre si que o vencedor será aquele que lograr despir de seu manto um viajante que caminha solitário por uma estrada.

O vento inicia soprando com intensidade crescente, mas seus esforços obtêm apenas que o andarilho se envolva cada vez mais em seu manto, terminando por deitar-se de bruços, para evitar que o manto e ele sejam levados pelos ares. Quando o vento exausto desiste, o sol sai detrás das nuvens onde se recolhera, aquecendo lentamente a terra com seus raios. O viajante despe então espontaneamente o manto e prossegue sua caminhada.

Eu era criança quando ouvi a história pela primeira vez, e a sua moral tornou-se uma referência permanente para mim, até porque a vi sempre praticada por meu pai. Para obter a cooperação das pessoas, vale muito mais compreender seus objetivos e procurar combiná-los aos nossos do que impor-se pela força.

Com o passar dos anos, a fábula ajudou a moldar meu caráter conciliador, que me faz atribuir os conflitos quase sempre à falta de aplicação na busca de soluções negociadas, falta de criatividade, prepotência ou açodamento. Assim, a revolta e as atitudes impositivas ficaram associadas à adolescência, enquanto o diálogo e a concórdia surgem como comportamentos maduros.

Foi, portanto, com surpresa que, já sexagenário, me dei conta da intensidade do sentimento de frustração e indignação que despertou em mim a ausência, mais uma vez, de resultados palpáveis em uma conferência global do clima, no caso a COP27 em Sharm El Sheikh, no Egito.

Após duas semanas de discussões, os documentos finais não trazem compromissos concretos de redução de investimentos em combustíveis fósseis e pregam o desenvolvimento acelerado de sistemas de energia de "baixa emissão", o que se teme possa ser usado para justificar a expansão de projetos de gás natural. Como parca compensação, obteve-se apenas um acordo em princípio para o estabelecimento de um fundo destinado a compensar as nações mais pobres pelas perdas causadas por eventos climáticos extremos.

Essa seria uma tentativa de atenuar o fato perverso de que a riqueza do mundo —gerada em grande parte através da queima de combustíveis fósseis— esteja concentrada nos países desenvolvidos do norte global, enquanto os mais graves reflexos dos gases de efeito estufa (GEE) resultantes desses processos ocorram nos países pobres e emergentes mais próximos à linha do Equador.

Talvez envenenado por uma bile negra, ou por uma recaída adolescente, não consigo deixar de ver no comportamento das nações desenvolvidas uma recorrência da postura altaneira com que os ricos muitas vezes ouvem os pedidos dos pobres. Deve ser por isso que me voltou à mente a frase de Bertolt Brecht, que tanto me fascinou na juventude: "Do rio que tudo arrasta, diz-se que é violento. Mas ninguém chama violentas às margens que o oprimem".

A compensação pelos danos decorrentes do aquecimento global em si mesma é um mero paliativo, que em nada contribui para reduzir as emissões de GEE que o provocam. A esse respeito, a percepção dominante ao final da COP27 é a de que a meta de conter o aquecimento global a 1,5ºC sobre a temperatura da época pré-industrial já não é realista. É nesse ponto que identifico a fonte principal de minha indignação: enquanto as nações pobres e emergentes veem-se dependentes da "benevolência" do mundo desenvolvido, os maiores emissores —que são também as nações mais ricas— continuam ocupando a atmosfera com seus GEE, sem pagar nada por isso.

Pode-se argumentar que, na ausência de uma lei estabelecendo a incidência de taxas sobre essas emissões, seria injusta a cobrança retroativa, quando só agora se conhecem os efeitos deletérios desses gases. (A matéria é passível de discussão, uma vez que há casos em que as leis podem ter efeito retroativo, como nas compensações de guerra, por exemplo). De qualquer forma, esse argumento não se poderia aplicar às emissões dos últimos 20 anos, que ocorrem já com pleno conhecimento dos danos a elas associados.

 

A cobrança pelas emissões correntes de GEE não apenas geraria recursos para atenuar os efeitos do aquecimento global mas teria ainda um poderoso efeito catalisador na superação definitiva do problema na medida em que desestimularia a queima de combustíveis fósseis e tornaria automaticamente mais competitivas todas as novas tecnologias destinadas à sua substituição. A isso se soma o papel decisivo que esses recursos teriam para a conservação e a recuperação de florestas em todo o globo, especialmente nos países tropicais.

Para o Brasil, que na COP27 assumiu diante do mundo o desafio de reduzir a zero o desmatamento ilegal na Amazônia, os recursos pagos pelos países emissores serão fundamentais para conferir sustentabilidade às políticas preservacionistas. Entre elas, deverá ter prioridade o combate à grilagem de terras públicas, que é responsável por pelo menos 30% do desmatamento na região. Esse é o processo pelo qual o grileiro invade e degrada uma terra que pertence a todos nós, com o objetivo de firmar sua posse sobre ela, causando prejuízos diretos e indiretos a todos.

Seria injusto, açodado ou imaturo associar a grilagem ao processo pelo qual algumas nações ricas ocupam com seus gases a atmosfera que pertence a todos nós sem nada pagar por isso, deixando ao mundo as graves consequências climáticas daí resultantes?

Para nosso novo governo, do qual se espera uma "grande virada" em termos de política ambiental, soma-se ao desafio de preservação da floresta o objetivo, ainda mais complexo, de liderar os esforços diplomáticos para a articulação de uma governança climática global, que não poderá prescindir do estabelecimento de um preço mundial para o carbono, a ser pago pelas nações emissoras. Temo que venha a ser necessário bem mais que o exercício de um espírito conciliador para alcançar êxito nessa tarefa (Candido Bracher é Administrador de Empresas formado pela FGV e foi executivo do setor financeiro por 40 anos; Folha de S.Paulo, 18/12/22)