23/09/2021

Negacionismo energético – Editorial O Estado de S.Paulo

Negacionismo energético – Editorial O Estado de S.Paulo

Indicadores que dão base ao otimismo do ministro de Minas e Energia são desconhecidos.

 Relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) sobre a gestão da crise hídrica pelo governo revelou aquilo de que uma boa parte da sociedade já desconfiava. As medidas adotadas até agora são insuficientes para afastar o risco de apagão. Não deveria surpreender ninguém, já que o enfrentamento de qualquer situação crítica passa, em primeiro lugar, pela admissão de que o problema, de fato, existe.

Quem assiste às entrevistas do ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, vai ouvir que o risco de racionamento no País é zero. Os indicadores que dão base a essa previsão tão otimista, no entanto, são desconhecidos. Os anteriores, usados até o fim de 2018, foram considerados inadequados pelo governo Jair Bolsonaro, mas não foram substituídos por nenhum outro. No mercado, não há dúvidas sobre a gravidade da crise. A PSR, maior consultoria do setor no País, afirma que o risco de racionamento é de 20% e o de apagão, de 30%. Para os auditores do TCU, as medidas adotadas pelo Executivo no enfrentamento da seca carecem de previsibilidade e razoabilidade.

Foi apenas em 31 de agosto, por exemplo, que os consumidores descobriram que iriam pagar uma nova taxa nas contas de luz no dia seguinte, 1.º de setembro. O sistema de bandeiras tarifárias, que usa as cores verde, amarela e vermelha para sinalizar os custos de geração nas tarifas, a exemplo de um semáforo, foi insuficiente para dar conta do problema. Agora, todos pagam a “bandeira de escassez hídrica”, um adicional de R$ 14,20 a cada 100 quilowatts-hora consumidos.

Além de passar por cima das atribuições da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), órgão responsável justamente pelo cálculo das tarifas, o governo, até agora, não divulgou de que forma chegou ao valor da nova bandeira nem os critérios para seu acionamento. Mesmo que, por um milagre, o volume de chuvas seja suficiente para encher os reservatórios das hidrelétricas ao longo do período úmido, a taxa vai vigorar até abril de 2022.

O pouco que se sabe é que o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, atuaram de forma direta para impedir que a Aneel aplicasse a taxa considerada adequada, de quase R$ 25 a cada 100 kWh, tudo para conter parte do desastre que será a inflação deste ano. Analistas consultados pelo BC projetam que o IPCA fechará o ano em 8,35%, diante de uma meta de 3,75%.

Cada vez mais, um misto de negacionismo, improviso e perversidade se consolida como a marca do governo também na área econômica. Para bancar o aumento do Bolsa Família aos mais necessitados, o governo aumenta o imposto dos endividados. Para impedir o racionamento, o Executivo autoriza um tarifaço via bandeiras. Depois, anuncia um bônus para aqueles que conseguirem economizar entre 10% e 20% de seu consumo. A bonificação, no entanto, será paga pelos próprios consumidores, por meio de encargo na conta de luz.

Extinto há dois anos, o horário de verão, política que contribui para reduzir os picos de consumo nos horários de ponta, como confirmou recente estudo do Operador Nacional do Sistema (ONS), não deve ser retomado. Motivo: o presidente Jair Bolsonaro não gosta da medida. Esse é o nível de governança à qual os brasileiros estão expostos.

Em 2001, o governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso determinou uma meta de economia de energia de 20% para todos os consumidores, com multa para aqueles que não a cumprissem. Coube a FHC ir à TV, em cadeia nacional, pedir a colaboração da população para que não houvesse apagões. A figura do presidente foi fundamental para demonstrar a gravidade da crise. Custou a derrota do candidato tucano, José Serra, na eleição de 2002.

Vinte anos depois, racionamento se tornou palavra proibida no governo. Interessado apenas em sua reeleição, o presidente Jair Bolsonaro se esconde atrás da figura do ministro Bento Albuquerque, escalado para fazer os impopulares pronunciamentos sobre o tema em rádio e TV, e até mesmo do humorista Sérgio Mallandro, famoso por suas “pegadinhas”, que protagoniza uma campanha do governo. É para rir? (O Estado de S.Paulo, 23/9/21)