Nova norma e preço do leite pressionam pequeno produtor
Região Sul, maior produtora, perdeu um leiteiro por hora nos últimos 5 anos.
Todos dias antes de o sol raiar, Rosi de Lima Costa, 53, acorda para ordenhar as vacas da pequena propriedade rural, em Santana do Livramento, a 423 km de Porto Alegre, na fronteira com o Uruguai. A atividade leiteira garante a renda mensal de R$ 1.000 para a família gaúcha de cinco pessoas.
O valor é a diferença entre o pagamento recebido da indústria e os gastos de produção. Cada litro de leite é vendido por R$ 1, enquanto os gastos somam R$ 0,90 por litro, incluindo medicamentos para as vacas e despesas com energia elétrica. A família comercializa 5.000 litros por mês.
“A gente se sente muito prejudicado, humilhado e desestimulado”, diz a produtora sobre o preço baixo. A situação é semelhante a de outros 400 leiteiros cooperados da região de Livramento (RS) e se repete Santa Catarina e Paraná. Juntos, os três estados são responsáveis pela maior parte do leite produzido no país.
Porém o cenário tem se agravado para pequenos produtores, como a família Costa. As instruções normativas 76 e 77 do Ministério da Agricultura (Mapa) alteraram critérios de qualidade do leite e exigências para a produção.
As mudanças valem desde maio, mas penas só serão aplicadas a partir de novembro.
Os pequenos produtores se sentem prejudicados pela mudança da temperatura limite do leite ao chegar à indústria. Antes, podia estar a 10ºC Agora, no máximo, a 7ºC. Outras alterações, que envolvem assistência técnica veterinária e contagem bacteriana, já são cumpridas pelos produtores.
“Nosso leite vai até um laticínio de Boa Vista do Sul, são 500 km de distância. Mandamos para Pelotas, são 350 km até lá. Estamos entregando na temperatura certa, mas ainda não começou o verão, estamos preocupados”, diz Rosi.
Na temperatura até então aceita, o leite permanecia próprio para consumo, diz o Mapa. Para a pasta, “não se trata só de leite próprio ou impróprio ao consumo mas da qualidade da matéria-prima que refletirá diretamente no produto que chega ao consumidor”.
O coordenador da Fetraf Sul (Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar), que abrange os três estados sulistas, Alexandre Bergamin, diz que a maior parte dos pequenos produtores está distante dos centros urbanos, onde estão os laticínios. As distâncias dificultam cumprir condições de resfriamento e transporte impostos e encarecem o frete.
Para Bergamin, o governo não se preocupou em criar política de fomento e organização da atividade. “Criou a lei e disse aos agricultores: ‘se virem’”, opina. Com propriedade em Chapecó (SC), a família de Bergamin aposta na produção de queijos como saída. Outros produtores têm migrado para a fabricação de queijos como alternativa.
“Todos concordamos serem extremamente necessárias as melhorias de índices de qualidade, mas as normativas devem gerar o menor impacto negativo possível”, diz Elizandro Krajczyk, coordenador da Fetraf no Paraná, onde 110 mil famílias dependem da cadeia leiteira, segundo a entidade.
O ministério alega que a “temperatura de recebimento não é problema a ser resolvido pelos produtores, mas pela indústria, ajustando o tempo de duração e distância das rotas” e que “a normativa prevê que o leite pode excepcionalmente ser recebido a 9ºC, no caso de haver contratempos no transporte”.
Representante da indústria, Alexandre Guerra, presidente do Sindilat RS (Sindicato da Indústria de Latcínios e Produtos derivados), confirma que são as empresas responsáveis por buscar o leite nas cooperativas. Porém a nova norma impacta o produtor. “Para o leite entrar na indústria a 7ºC, temos que pegar o produto com 4ºC”, explica.
“Nós temos caminhões resfriados, mas, dependendo da região, produtores enfrentam dificuldades com a energia elétrica. Não basta ter energia, ela tem que ter qualidade. Há ainda problemas com estradas. A preocupação é quando chegar o verão”, diz Guerra.
As mudanças têm gerado protestos. Em Porto Alegre, duas vacas caminharam pelas ruas do centro no último dia 15, levadas por agricultores, remetendo ao problema. Parlamentares ligados ao setor, MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra) e a Fetraf pedem que o Ministério da Agricultura suspenda temporariamente as normativas.
A alteração pode levar mais produtores a deixarem a atividade leiteira. Segundo o engenheiro agrônomo Lorildo Aldo Stock, da Embrapa Gado e Leite, os três estados do Sul perderam 55 mil produtores em cinco anos, entre 2013 e 2018. O número caiu de 315 mil para 260 mil, 55 mil a menos em cinco anos, com média de 11 mil por ano. O número equivale a 1,2 produtor que desistiu da função por hora no período, ou seja, 30 por dia.
“Não é trabalho fácil. Não tem folga de Natal, Ano Novo, não tem pausa”, diz Stock.
Ele aponta outros fatores que levam à desistência. “Muitos produtores começam a ficar velhos e às vezes não têm sucessão porque os filhos saem para estudar na cidade.”
Mesmo que não desista, o pequeno produtor pode ficar sem clientes. Isso porque as indústrias de laticínios têm aproveitado a rigidez nas regras para optar só pelos maiores fornecedores, explica Krajczyk, da Fetraf do Paraná.
Essa exclusão direciona a produção leiteira brasileira para a exportação, segundo Bergamin, da Fetraf Sul. o que deve comprometer o mercado interno. “Vão colocar os robôs para tirar leite. Não conseguimos entender como uma política de governo exclui gente.”
“Se pararmos com o leite, o que vamos fazer? Vamos ver de novo o êxodo rural. Isso só vai ampliar as favelas com fome e miséria”, diz Rosi (Folha de S.Paulo, 29/10/19)