O agronegócio responde por 21,1% do PIB brasileiro
O Brasil tem uma das maiores e melhores porções de terras agricultáveis do planeta, o que nos colocou no centro da agenda mundial quando o tema é produção de alimentos. Sorte? Mais que isso. “Sorte é o que acontece quando a preparação encontra a oportunidade”, já disse o filósofo romano Sêneca no longínquo século 1. Há 40 anos, o país começou a se preparar. A oportunidade estava lá: bilhões de bocas famintas no mundo, além de uma demanda cada vez maior por energia e outros bens que têm sua origem na terra.
Se na década de 1970 nós importávamos alimentos para saciar 90 milhões de brasileiros, hoje alimentamos 1,5 bilhão de pessoas no globo. Segundo a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), essa condição de “celeiro do mundo” possibilitou a prática de preços mais acessíveis aos consumidores, elevou a renda e a geração de empregos e impulsionou a participação da agricultura no Produto Interno Bruto: hoje o agronegócio responde por 21,1% do PIB brasileiro.
Em um país tropical, em que fungos, vírus, bactérias e plantas daninhas que atacam as áreas cultivadas encontram condições perfeitas para se desenvolver, a “mágica” incluiu investir em pesquisa e tecnologia. Atualmente, conseguimos produzir muito mais por hectare – enquanto a produção aumentou 4,5 vezes, a utilização de insumos avançou pouco mais de 15%.
Entre 1975 e 2015, 59% do crescimento do valor bruto da produção brasileira, o VBP, deveu-se à tecnologia, enquanto terras e trabalho explicam, respectivamente, 25% e 16%. O investimento em processos de intensificação sustentável incluiu inovações como a produção de duas safras por ano em uma mesma área, recuperação de pastagens degradadas, sistemas agroflorestais e de plantio direto, fixação biológica de nitrogênio, florestas plantadas e tratamento de dejetos animais.
A tecnologia nos fez chegar até aqui. No entanto, o amplo acesso a ela é, hoje, um dos maiores desafios do setor. Segundo Daniel Carrara, diretor-geral do Senar (Serviço Nacional de Aprendizagem Rural), é isso que vai fazer a diferença para mudarmos o quadro de concentração de renda e aumentar nossa produtividade. “Temos no país 5,17 milhões de produtores rurais. Desses, por volta de 300 mil são responsáveis por quase 79% do VBP do agronegócio; 800 mil produzem 13,5%; e o restante, apenas 7,6%.”
A diferença, diz Daniel, é que os produtores do topo têm as melhores e mais sustentáveis práticas, técnicas e tecnologias – e já praticam a chamada Agricultura 4.0. “Precisamos introduzir tecnologia no médio e no pequeno produtor rural para aumentar sua produtividade. Se ele tem uma pastagem com capacidade de suporte de meio animal por hectare, por exemplo, pode, com tecnologia, subir para sete animais. Isso significa que ele não precisa abrir novas áreas”, explica o especialista, afirmando que sustentabilidade é uma preocupação central nessa equação.
“Democratizar a tecnologia é, portanto, o grande desafio. Isso se faz com assistência técnica e avaliação gerencial, porque, às vezes, a tecnologia mais avançada não é a que é necessária para determinado produtor.” Por isso, o Senar, entidade vinculada à CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil), tem como uma de suas prioridades o programa de assistência técnica e gerencial para o produtor rural.
Com metodologia própria, testada por três anos, o programa conta hoje com 3 mil técnicos em campo, que já prestaram assessoria para 120 mil produtores. A meta é chegar nos próximos anos a 300 mil produtores atendidos com mais 3 mil técnicos em campo. “O país tem tecnologia disponível, mas ela precisa chegar ao produtor. E a tecnologia vai chegar ao campo por meio de assistência técnica. A assistência técnica é muito mais do que introduzir novas formas de produção”, afirma João Martins, presidente da CNA. “É, acima de tudo, qualificar os produtores para a gestão eficiente do seu negócio, fazendo melhor uso dos recursos e percebendo as oportunidades de mercado.”
Safra estável
Entre 1977 e 2017, a produção de grãos no país, que era de 47 milhões de toneladas, cresceu mais de cinco vezes, atingindo 237 milhões. Hoje, os produtos de origem animal e vegetal no meio rural ultrapassam 400 itens. O VBP do setor, segundo dados disponíveis até setembro, deve fechar este ano em R$ 609,7 bilhões, uma leve redução de 0,2% em relação a 2018, de acordo com a CNA. Como a expectativa é que o VBP agrícola diminua 4,1%, a estabilidade se deve ao crescimento do ramo pecuário, que pode chegar a 7% em 2019.
Alguns fatores são responsáveis pela baixa do setor da agricultura. O café arábica deve cair 27,4% por causa da bienalidade cafeeira, movimento comum no ciclo produtivo responsável pela alternância entre anos de maior e menor produção. Algodão e milho também tiveram queda no preço, mas elas foram compensadas com aumentos, respectivamente, de 35,9% e 24% na produção – o que deve provocar crescimento de 13,1% e 15,8% do VBP desses produtos.
As perspectivas do setor de grãos, porém, são otimistas. “O Brasil deverá ser este ano o maior produtor de soja do planeta. Mesmo com as leis ambientais mais rígidas do mundo, respeitando reservas legais e enfrentando subsídios de outros países, conseguimos esse protagonismo – isso sem retirar uma só árvore”, afirma Bartolomeu Braz Pereira, presidente da Aprosoja Brasil (Associação dos Produtores de Soja). Para Bartolomeu, dificuldades como a falta de infraestrutura de logística (para escoar a produção) e de políticas mais bem definidas de crédito e de seguro (para manter o produtor em atividade) ainda são uma realidade no universo da soja, que gera 10 milhões de empregos diretos e indiretos e responde pelo maior VBP do país: quase R$ 145 bilhões em 2019. “É preciso melhorar isso para sermos ainda maiores.”
Para o setor de cana, o quinto maior VBP, com R$ 45 bilhões, o otimismo é alavancado pela incorporação de um novo serviço. “Originalmente, produzíamos açúcar. Depois veio o etanol como substituto para a gasolina e, por fim, a energia elétrica, gerada com a biomassa. Surge agora um quarto grande serviço no setor sucroenergético: somos um dos principais responsáveis pela redução de emissão de gases causadores de efeito estufa no Brasil e no mundo”, diz Evandro Gussi, diretor-presidente da Unica (União da Indústria de Cana-de-Açúcar). “Somos uma das respostas mais eficientes para a principal demanda global.”
Segundo levantamento da Unica, entre março de 2003, data de lançamento da tecnologia flex nos automóveis, até fevereiro deste ano, o consumo de etanol reduziu as emissões desses gases em 535 milhões de toneladas de CO² equivalente, como é chamada a medida usada para comparar as emissões de vários gases de efeito estufa baseada no potencial de aquecimento global de cada um. Para atingir essa economia de CO@, seria necessário plantar 4 bilhões de árvores nos próximos 20 anos. Os biocombustíveis têm potencial para reduzir em 70% as emissões globais do gás até 2050, de acordo com um estudo elaborado pela Irena (Agência Internacional de Energia Renovável).
Em relação ao mercado interno, a RenovaBio (Política Nacional de Biocombustíveis), política para a descarbonização da matriz de transportes, é considerada um importante impulso. “Alcançar a meta vai ser possível com a migração de combustíveis fósseis para os biocombustíveis”, explica Evandro. Segundo a ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis), 96 unidades produtoras de biocombustíveis já estão em processo para a obtenção do Certificado da Produção Eficiente de Biocombustíveis, previsto pela RenovaBio. Já no que diz respeito ao mercado externo, apesar de haver programas de etanol em mais de 60 países, quase 90% do consumo global está concentrado no Brasil, Estados Unidos e União Europeia. É preciso ampliar isso – trabalho ao qual a liderança da Unica está se dedicando.
Responsável por 6,9% do PIB industrial do país e 1,3% do PIB total, o setor de florestas plantadas também mira no mercado externo. Ele já ocupa o terceiro lugar no ranking das exportações brasileiras, só perdendo para a soja e as carnes. “Temos procurado ocupar um espaço maior no mercado internacional, mas queremos expandi-lo. Essa é uma alternativa para quem plantou eucalipto aqui no país e não conseguiu mercado interno”, afirma o presidente da Comissão de Silvicultura da CNA, Walter Resende.
Segundo ele, o setor, “altamente rentável”, atraiu muitos produtores nos últimos anos. “O país selou o compromisso de plantar 12 milhões de hectares de floresta até 2030 para reduzir as emissões de gases de efeito estufa. O problema é que já temos hoje 10 milhões de hectares plantados e não há mercado para o excedente da produção. As exportações ajudariam os produtores que não planejaram direito suas florestas a não quebrar.”
Pecuária em alta
Em 2019, a pecuária não teve do que reclamar: o setor apresentou altas tanto de preços como de produção. Em relação à carne bovina, nosso segundo maior valor bruto de produção no país, o VBP cresceu 3,6% de 2018 para 2019, alcançando R$ 105 bilhões. Ainda assim, Antônio Pitangui de Salvo, presidente da Comissão Nacional da Bovinocultura de Corte da CNA, afirma que o país tem potencial para produzir muito mais. O que falta? Mais uma vez, acesso à tecnologia. “Nos últimos 20 anos, houve um salto gigantesco no pacote tecnológico da agricultura. O país saiu de uma agricultura boa para uma de precisão, compatível com as maiores do mundo. Já a pecuária não acompanhou essa velocidade”, afirma.
As razões para isso, afirma ele, são históricas e devem-se principalmente às linhas de crédito conferidas para a agricultura. “Não podemos trabalhar com as mesmas linhas porque os ciclos agrícolas são muito mais curtos.” Outro motivo: a pecuária é muito mais pulverizada. “A agricultura procura locais de temperatura adequada, porque a parte de solo pode ser corrigida – a tecnologia para isso está muito bem dominada. Já a pecuária continua nas mais diversas regiões, de baixa, média e alta aptidão. Nós, produtores, precisamos vencer esse gargalo dos baixos índices de produtividade que também aconteceram na agricultura até os anos 80 e 90.”
Produtores de frangos e suínos também comemoram. As produções subiram, respectivamente, 14,2% e 22,9%. A alta nos preços tem uma razão primordial: aumento da demanda por causa da peste suína africana na China. “Passamos por anos de crise, vendo empresas encolhendo, em recuperação judicial e fechando. Trabalhamos sempre muito forte para abrir o mercado internacional, mas fatos como a Operação Carne Fraca prejudicaram nossa imagem. Países reduziram compras: no epicentro da crise, cerca de 70 deles pararam de comprar conosco e tivemos que reconquistá-los”, afirma Francisco Turra, presidente da ABPA (Associação Brasileira de Proteína Animal), que cuida dos setores de aves e suínos, referindo-se à operação da Polícia Federal, deflagrada em 2017, que investigava empresas acusadas de adulterar carne.
“Neste ano, de repente o vento veio soprar a nosso favor”, comemora Francisco. “A safra cheia foi o primeiro fator de estabilização, porque garante alimentação para as aves. Hoje somos o segundo maior produtor de milho do mundo, perdendo apenas para Estados Unidos. Mas há outro item: começou a recrudescer a peste suína africana da China, onde está metade do rebanho do planeta, responsável por 54 milhões de toneladas de uma produção mundial de 115 milhões no ano passado. Contra ela, não há vacina.”
A gripe suína africana dizimou o plantel chinês. “Como o mundo não consegue substituir quase metade do rebanho eliminado pela doença, o consumo de outras proteínas, como a bovina, de aves e pescados, tem aumentado”, afirma Charles Tang, presidente da Câmara de Comércio e Indústria Brasil-China. “Só na feira de importação chinesa do ano
passado, a JBS firmou contrato de venda de US$ 5 bilhões para o Ali Baba.”
Segundo ele, o agronegócio brasileiro também se beneficia da guerra comercial entre Estados Unidos e China. “Os agricultores americanos dedicaram décadas para conquistar a confiança do maior mercado do mundo. Chegaram a ser os maiores exportadores de soja, grãos, algodão, proteínas bovinas, suínas e aves”, explica ele. “Em um minuto, a confiança foi quebrada com a guerra comercial. O avanço econômico e tecnológico da China incomodou a maior economia do mundo”, analisa Charles.
Como compara o presidente da entidade, a confiança é como um vaso: uma vez quebrada, é difícil colar novamente. “Mesmo com um acordo entre EUA e China, que deverá ser feito, o benefício para o Brasil deverá permanecer no longo prazo. A China precisa de fornecedores de confiança.” Charles afirma também que as economias do Brasil e da China são complementares, enquanto a nossa e a dos americanos são concorrentes. “Quando a China compra menos dos EUA, compra mais do Brasil. Na safra passada, o Brasil exportou quase 90% da soja para a China.”
A preparação, mais uma vez, contou com a oportunidade. Sêneca diria que é sorte nossa.
(Forbes.com, 27/3/20)