26/01/2018

O bife sustentável – Por José Graziano da Silva

O bife sustentável – Por José Graziano da Silva

A capacidade de se alimentar de forma flexível e abrangente teve influência decisiva no salto evolutivo da humanidade. A expressão "somos o que comemos" não elucida todo esse percurso, mas envia um lembrete oportuno à encruzilhada alimentar e ambiental da humanidade nos dias de hoje, com base numa dieta crescentemente proteico-carnívora.

 

Nos últimos 30 anos, o consumo de carne e outros produtos de origem animal (leite e ovos) mais do que triplicou em países de renda média e baixa, em razão do crescimento populacional, urbanização, aumento de rendimentos e globalização.

 

Tais fatores seguirão exercendo pressão. Projeções da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) indicam que o consumo de carne nos países de renda média e baixa deverá aumentar em cerca de 80% até 2030 e mais do que 200% até 2050.

 

Esse aumento substancial gera oportunidades, por exemplo, para o crescimento econômico, mas inclui também muitos riscos.

 

A agricultura moderna já responde por um quinto dos gases do efeito estufa que alteram o clima na terra. O controle dessa espiral é incontornável. Se não for bem sucedido, os fatos em curso e as projeções científicas apontam para uma rotina de desastres ambientais extremos. Eles podem devolver os homo 'sapiens sapiens' a limites de sobrevivência equivalentes às piores experiências vividas pelos seus antecessores mais remotos.

 

O setor de alimentos de maior peso nas emissões é a pecuária. De fato, o setor de produtos de origem animal responde por 14,5% das emissões globais de gases de efeito estufa. Cerca de 40% das emissões na pecuária proveem do processo de digestão do gado bovino, que libera o gás metano (cujo potencial para causar o efeito estufa é 25 vezes maior do que o CO2).

 

O rebanho global de bovinos é hoje da ordem de 1 bilhão de cabeças. O do Brasil, com mais de 200 milhões de cabeças, forma o maior criatório comercial da terra - a Índia, com 330 milhões, tem exploração pecuária fundamentalmente só para produção de leite, enquanto os Estados Unidos deverão superar o patamar de 90 milhões de cabeças em 2018.

 

Supor que o efeito dessas emissões possa ser corrigido exclusivamente com a reconversão à dieta alimentar anterior à expansão caçadora, há 2,5 milhões de anos, não é apenas improvável: seria, sobretudo, desperdiçar um precioso patrimônio de adaptação e versatilidade arduamente construído.

 

Se os sistemas alimentares urdidos em milênios não galgarem um novo degrau evolutivo, quedas na produção associadas a mudanças climáticas poderão elevar em 20% a escala da fome. Em 2016, cerca de 815 milhões de pessoas sofreram de fome no mundo Também não se pode perder de vista que metade dos cerca de 770 milhões de pobres rurais no mundo, os quais sobrevivem com menos de US$ 1,9 por dia, dependem diretamente da produção animal. Na América Latina, tal estatística alcança quase 70% dos extremamente pobres, ademais de existirem imensas extensões do planeta, cerca de 30% da fronteira ocupada, cujo clima e solo prestam-se sobretudo à pecuária.

 

Nada disso, porém, autoriza a indulgência protelatória com o divisor ambiental em marcha: padrões de criação e consumo de proteína animal podem e devem mudar, em concordância com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável.

 

A experiência mostra que o ganho de produtividade na pecuária reduz entre 20% a 30% a emissão animal de gases de efeito estufa, libera áreas para a agricultura que precisa alimentar dez bilhões de bocas até 2050 e evita uma escalada do desmatamento nas fronteiras que vão arcar com a maior fatia dessa expansão. O Brasil à frente.

 

Quase 70% das terras incorporadas atualmente à produção alimentar no planeta são utilizadas para a pecuária. Há desperdício e ociosidade. Cálculos da FAO indicam que cerca de 65% das pastagens da América Latina e Caribe, por exemplo, encontram-se em processo de degradação.

 

A boa notícia: a equação ambiental dispõe de um oceano fundiário capaz de fazer da pecuária um doador de terras com duplo efeito redutor nas emissões - direta, pela redução do tempo de abate, e indireta, ao dispensar o desmatamento para expansão de fronteira agrícola.

 

A FAO concentra suas ações em três frentes: 1- melhorias de produtividade que reduzam as intensidades das emissões; 2- sequestro de carbono da atmosfera por meio de um melhor gerenciamento de pastagens e dos solos; e 3- melhor integração do gado no que chamamos de bioeconomia circular, a partir, por exemplo da reciclagem e melhor utilização dos resíduos do gado.

 

A má notícia: se os sistemas alimentares urdidos em milênios não galgarem um novo degrau evolutivo, quedas na produção associadas a mudanças climáticas poderão elevar em 20% a escala da fome até 2050. Em 2016, cerca de 815 milhões de pessoas sofreram de fome no mundo.

 

O aliado principal em busca da sustentabilidade é o legado de um repertório alimentar versátil e diverso, milenarmente redimensionado para atender a desafios mutantes da sobrevivência.

 

Essa sabedoria pode nos ajudar. A lição quase esquecida que ela encerra consiste em não sobrecarregar o organismo humano - e por extensão todo o planeta, de desequilíbrios decorrentes de uma inadaptação proteica ou calórica insustentável, com seus desdobramentos ameaçadoramente já visíveis: epidemia de obesidade, desmatamento, fome, rupturas climáticas, desordem metabólica e caos ambiental.

 

Nossa existência não reflete apenas o que comemos. Mas se não soubermos comer podemos perder o direito de existir (José Graziano da Silva é diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO)