08/07/2024

O Brasil surta e delira para recalcar problemas essenciais

O Brasil surta e delira para recalcar problemas essenciais

Foto Blog iG -bandeira-chorando- 14-05-2014 - REPRODUÇÃO

Por Vinicius Torres Freire

País afunda em debate econômico louco e ruim, paga caro e fica no mesmo lugar.

Durante dois meses, o debate-boca sobre economia andou mais desvairado do que de costume. Foi aquela algaravia sobre déficits, isenções de impostos, juros e Banco Central.

Ao final do surto, Lula 3 não terá conseguido jeitinho de aumentar a despesa de modo relevante, para efeitos práticos, sociais ou políticos. A promessa de contenção de despesas anunciada por Fazenda e Planejamento deixa quase inalterada a perspectiva de que a dívida pública continuará a crescer.

Quanto ao déficit, pois, não aconteceu nada, para os que odeiam ou que amam contas no vermelho. Juros e dólar ainda mais altos deixaram um saldo ruim. Ficamos no mesmo lugar, com um futuro imediato mais danado.

Em vez disso, poderíamos ter passado por conflito sério, em todos os sentidos da palavra. Por exemplo, uma disputa causada por um plano de Lula 3 de aumentar impostos sobre renda e patrimônio de ricos. Ou de diminuir aqueles benefícios tributários dos quais Luiz Inácio Lula da Silva tanto tem se queixado, mas sobre o que não propôs quase nada. Na verdade, cria ou defende mais isenções.

Mais imposto progressivo ainda é providência necessária se quisermos conter o endividamento crescente e perigoso do governo; desde 2015 é necessária a fim de acelerar o ajuste e distribuir a conta de modo mais justo. Não será suficiente nem vai funcionar se não houver também contenção da despesa e reorganização do Estado. Contenção não significa redução.

 

Em vez de conflito sério, tivemos um surto contraproducente, prejudicial até para interesses politiqueiros do governo.

Vivemos conflitos fantasmagóricos, embora motivados por dores reais. Uma névoa grossa de ideologia abafa debates essenciais como impostos, uma reforma do SUS que barre a privatização da saúde, as opções duras da transição energética, a reforma da propriedade urbana, um choque contra a devastação ambiental, a escola péssima, o desemprego crônico, os juros altos —para ficar no mais óbvio.

Relatos sobre o bunker luliano dizem que, na visão da "ala política", bater na meta fiscal, no BC, nos banqueiros etc. renderia pontos nas pesquisas. Quanto custaram décimos de prestígio? Parece tudo louco e ignorante.

Perto de 71% do gasto primário é social: Previdência (INSS), benefícios sociais (Bolsa Família, BPC, seguro desemprego etc.), saúde, educação, ciência. Outros 17% vão para servidores (salários, aposentadorias, pensões e benefícios).

"Ah, e os juros?". A receita do governo federal equivale ora a 17,7% do PIB. O gasto é de 20,4% do PIB. O déficit primário é, pois, de 2,7% do PIB, o que é financiado por mais dívida.

A conta de juros da dívida, de 6,1% do PIB, é paga também por meio de mais dívida. Mesmo que a despesa com juros diminuísse, o que é desesperadoramente necessário, não haveria mais dinheiro para gasto primário (Previdência, benefícios sociais etc.), para os quais nem a receita atual de impostos é suficiente (há déficit primário).

A despesa com juros é ora maior também porque a dívida federal cresceu. Era de 50,7% do PIB ao final de Lula 2 (2010), de 65,4% ao final de Dilma 2 (agosto de 2016) e está em 73,2%, crescendo rápido. Dívida crescendo sem limite eleva as taxas de juros, tudo mais constante.

Parte da dívida federal é remunerada pela taxa Selic, definida pelo BC. Parte, de prazo mais longo, é definida no mercado de dinheiro. O BC pode diminuir a Selic em quanto quiser, até a zero, amanhã. As demais taxas subiriam. Se a lei mudasse (e supondo que não haja pânico explosivo), poderia até baixar taxas de outros prazos. A inflação ficaria sem controle; o dólar explodiria, causando mais inflação. O desastre iria além. Quem souber como fazer essa mágica dar certo, com modelos e planos: cartas para a redação (Folha, 7/7/24)