27/05/2019

O documento que mudou o mundo – Por Antonio Cabrera

O documento que mudou o mundo – Por Antonio Cabrera

Contrato assinado por agricultores chineses em meio ao governo de Mao Tsé-tung mudou a cara do país.

“Trabalhe duro, não trabalhe duro – todos recebem o mesmo. Então as pessoas não querem trabalhar.” (Yan Hongchang)

Em 1978, um pequeno pedaço de papel assinado em Xiaogang, um vilarejo na longínqua China rural, teve o poder de formatar o mundo como vivemos hoje.

Depois de tomar o poder em 1949, Mao Tsé-tung aboliu brutalmente a propriedade das terras privadas, agrupando fazendas em “comunas populares” subservientes ao Estado. Essa brutal intervenção do Estado ficou conhecida como o Grande Salto para Frente, gerando a escassez mais mortal de toda a história. Era a utopia de que o planejador central sabia melhor como cultivar os campos.

Em 1960, a China era um caos completo. A taxa de mortalidade pulou de 15% para 68%, e a taxa de natalidade despencou. Os agricultores, totalmente desnutridos, eram incapazes de lavrarem o solo e morriam vendo o arroz apodrecer.

Quem quer que fosse pego estocando grãos era fuzilado. Os mortos por inanição chegaram a 50% em alguns vilarejos. Os sobreviventes vagueavam pelas estradas à procura de comida.

Mas isso ainda era pouco. Em 1968, um membro da Guarda Vermelha, de 18 anos, chamado Wei Jingsheng, se refugiou próximo a Xiaogang e descreveu cenas dantescas: famílias trocavam suas crianças para poder comê-las. A China, foi, de longe, o maior campo de morte da história do mundo.

Como não poderia ser diferente, os agricultores de uma pequena aldeia chamada Xiaogang estavam desesperados pela completa falta de comida. Mesmo desenterrando raízes ou cozendo folhas com sal, eles não estavam conseguindo alimentos suficientes para a sua sobrevivência. Foi então que em uma noite no fiml de novembro de 1978 um grupo de 18 agricultores de Xiaogang se reuniu secretamente e tomou uma decisão radical.

Comandados por Yan Hongchang, eles assinaram um contrato que devolvia as terras para cada agricultor de forma individual. Eles sabiam que o planejamento estatal não estava funcionando. Mas o fato de dividir a terra entre si poderia leva-los à prisão e, para tanto, concordaram que ninguém jamais saberia daquela história.

Caso alguém fosse preso, ficou combinado que os outros criariam os filhos dos prisioneiros.

Era um documento contra a base do socialismo e quase um retorno à propriedade privada. Uma verdadeira contrarrevolução em plena ebulição revolucionária de Mao Tsé-tung.

Então aconteceu um verdadeiro milagre. Em um ano, a extensão de terra plantada praticamente dobrou e a aldeia passou a gerar excedente de arroz.

As notícias do sucesso da “agricultura individual” rapidamente se espalharam por toda a China.

A produção de grãos aumentou para 90 mil quilos em 1979, mais de seis vezes a registrada no ano anterior. A renda per capita de Xiaogang acompanhou o passo e subiu dos 22 yuans para 400 yuans. Para se ter uma ideia, isso foi o equivalente à soma total de todas as colheitas entre 1955 e 1970, de acordo com dados oficiais. Praticamente da noite para o dia, a vila saiu da pobreza.

Aparecem as primeiras críticas ferozes e, em 1979, o Partido Comunista Chinês (PCC) emite uma nota reafirmando que o “trabalho individual nos campos” não estava permitido.

No entanto, como a forma de produção de alimentos aumentava de maneira vertiginosa, em 1984, o governo recua e na 35.ª Parada Nacional, cinco tratores desfilam na Praça Tiananmen com um gigantesco letreiro dizendo que o contrato de Xiaogang era bom.

O próprio governo reconheceu que Xiaogang “quebrou o alto sistema de produção centralizado oferecendo ao agricultor o direito à autonomia da sua produção...”. “Isso liberou e desenvolveu a produtividade das áreas rurais.”

Posso dizer que há momentos na vida que tiram o fôlego. Foi o que experimentei quando visitei Xiaogang e entendi o corajoso passo dado por Yan Hongchang.

Quem explica melhor o que se passou em Xiaogang é o próprio reformador Deng Xiaoping. Em uma audiência com líderes estrangeiros, ele reconheceu que “Xiaogang era o lugar mais pobre da nossa história, mas houve uma grande mudança nos últimos dois anos. O lugar era o mesmo, mas a nova política agrícola alterou completamente o lugar”.

E destaca, de maneira explícita: “O sucesso do trabalho rural de Xiaogang aumentou nossa confiança; nós aplicaremos a experiência da reforma rural nas cidades e faremos uma larga reforma no sistema econômico com foco nas cidades”.

A contribuição do contrato de Xiaogang se refletiu não apenas no nível material. A onda histórica da reforma saiu do campo da economia e foi para as áreas da política, sociedade, cultura, etc. com um poder irresistível.

Em 1986, oito anos depois de Xiaogang ter retomado o controle de sua agricultura, o governo central da China emitiu as Diretrizes para o Trabalho Rural. O documento foi uma decisão marcante no desenvolvimento moderno do país. Com base na abolição das comunas populares três anos antes, endossou formalmente uma política que veio a ser conhecida como baochan daohu – um modelo de organização rural ao estilo Xiaogang conhecido como “sistema de responsabilidade doméstica”.

Com aquele acordo assinado à luz de velas no interior faminto da China, um grupo de homens sem muita instrução transformou a China, que passou de grande importadora para até exportadora de alimentos em alguns casos.

Xiaogang é uma impressionante testemunha de que civilização e propriedade privada são inseparáveis. O direito de propriedade, onde um agricultor pode controlar sua vida e o seu campo sem a interferência do Estado, é a instituição mais fundamental em qualquer economia e sociedade. É, sem dúvida, um dos maiores saltos de renda da história da humanidade.

Na entrada da cidade você encontra um slogan: “A origem da ascensão econômica de nossa nação”. Mas a verdade é que é muito mais do que isso. Esse acordo de Xiogang é um dos mais importante programas de combate à pobreza do mundo.

É um daqueles raríssimos documentos que mudaram o mundo (Antonio Cabrera é ex-ministro da Agricultura e Reforma Agrária; O Estado de S.Paulo, 25/4/19)