15/09/2023

O futuro do Brasil reside além da porteira – Por André Roncaglia

O futuro do Brasil reside além da porteira – Por André Roncaglia

André Roncaglia, professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP - Divulgação

Sem um pé de café, a Suíça exporta o bem por um valor 60 vezes acima do nosso.

Meu artigo sobre a meia-entrada do agronegócio no Brasil gerou reações curiosas, mas nenhuma refutou o fato de que o agro é fortemente subsidiado pelo Estado.

Ora, não precisa ser "subsídio ilegal" para onerar o orçamento público e transferir a conta para outros setores, seja via taxas preferenciais de juros no crédito direcionado (abaixo da Selic, ainda que acompanhe sua evolução), seja isenção tributária, seja aparato estatal de pesquisa (Embrapa).

A "preconceituosa" divisão setorial não resulta de motivação política, mas de uma consagrada metodologia que separa os macrossetores primário, secundário e terciário de acordo com o grau de transformação efetivada. Substituir o conceito de "setor" pelo de "cadeia produtiva intersetorial" permite inflar os números do agro (de 7,9% para 27% do PIB), adicionando a produção dos segmentos da indústria e dos serviços ligadas ao setor primário. Se aplicássemos esse esoterismo aos outros setores, faltaria PIB para acomodar todo mundo.

O livro de Caio Pompéia "A Formação Política do Agronegócio" detalha como essa manipulação de dados oficiais integra o projeto político-econômico do agronegócio. A partir dos anos 1990, associações de produtores difundiram a narrativa de que o agro carrega o Brasil nas costas. Alegava-se, então, que o crescente suporte estatal ao setor se justificava pelas externalidades positivas, como crescimento econômico, segurança alimentar e geração de divisas.

Para evitarmos a "cegueira ideológica" acima, consideremos as externalidades negativas. Dados do Observatório do Clima (Seeg) revelam que quase 70% emissões líquidas de CO2 no Brasil têm origem na agropecuária e nas mudanças de uso de solo e florestas (a indústria representa 3%). A atividade agropecuária de baixa sofisticação está associada à intensificação dos conflitos no campo e responde por 87% das pessoas resgatadas de condições análogas à escravidão. Municípios concentrados na agropecuária de exportação apresentam mais altos índices de desigualdade de riqueza: 4% das propriedades detém 63% das terras, segundo o Censo Agropecuário de 2017.

Ademais, a concentração da pauta exportadora em bens primários reduz a densidade tecnológica. Por exemplo, nos últimos anos, o Brasil elevou sua participação de 2% para 7% das exportações mundiais de algodão, enquanto perdeu mercado nas exportações mundiais de tecidos e aumentou as importações de vestuário. Essa regressão produtiva fragiliza as pequenas e médias empresas que exportam bens industriais, destruindo bons empregos.

Cálculos feitos por Guilherme Magacho, economista sênior da Agência Francesa de Desenvolvimento, em Paris, indicam o potencial desperdiçado pelo agronegócio. No caso da soja, para cada US$ 100 produzidos, o potencial de agregação de valor até o consumo final ou a exportação é de US$ 157. O Brasil adiciona apenas US$ 14, menos de 10%. O quadro se repete em outros segmentos, como milho e café.

Do outro lado, a Suíça, que não tem um pé de café, exporta o bem por cerca de 60 vezes o preço/kg do café que exportamos. A diferença está na densidade industrial, no valor adicionado às cápsulas de Nespresso, às máquinas para uso residencial e comercial e nos serviços sofisticados (financeiro e marketing). É a indústria que faz o agro ser tech.

Por isso, não faz sentido a indústria subsidiar o regime tributário e creditício especial do agro. Se este é tão eficiente, é hora de criar uma porta de saída ao "Bolsa Latifúndio" e fortalecer o segmento industrial com potencial de inovação e de respeito ao meio ambiente.

O agro não pode se anestesiar com os superávits comerciais recordes enquanto nos lega o papel de meros exportadores de bens primários. O complexo agroindustrial pode ajudar o Brasil a superar a maldição dos recursos naturais. Comecemos por separar o joio do trigo (André Roncaglia é professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP; Folham 15/9/23)