10/02/2020

O misterioso desaparecimento dos chefes do açúcar bielorrusso

O misterioso desaparecimento dos chefes do açúcar bielorrusso

Legenda: Putin, entre o desgaste e o vício pelo poder

 Após dias de especulações, o presidente Lukashenko revela que a KGB tem sob custódia os diretores das quatro empresas açucareiras estatais por corrupção.

Naquela segunda-feira, Dmitri Yegorov, diretor da grande empresa açucareira de Skidel, no oeste da Bielorrússia, não foi trabalhar. Também não foi na terça. Assim como Viktor Mironov, responsável durante mais de duas décadas pela açucareira Zhabinka. Rumores começaram a correr de que os dois haviam sido “convocados a Minsk”. Não voltaram a pisar na fábrica. Na sexta-feira anterior, Mikhail Kristanovich e Nikolai Prúdnik, chefes das outras duas empresas de açúcar do país decidiram tirar férias inesperadas. Durante dias, nada se soube do paradeiro dos diretores das quatro açucareiras do antigo Estado soviético. E a Bielorrússia começou a elucubrar sobre seu destino, que já se prognosticava bem pouco doce.

Prúdnik e Kristanovich nunca chegaram ao seu destino de férias. O Embraer 175 em que viajavam de Minsk a Munique, da empresa de bandeira bielorrussa Belavia, mudou de rumo quando sobrevoava a Polônia e aterrissou de maneira imprevista em Grodno (oeste da Bielorrússia). Lá, diante do olhar atônito dos passageiros, que temiam algum problema técnico e até uma ameaça terrorista, uma equipe policial subiu a bordo e levou os dois homens e seus acompanhantes. Mais tarde se soube que eram os dois diretores e suas famílias.

Onze dias depois, o presidente Aleksandr Lukashenko revelou o que a maioria do país suspeitava, que os chefes das quatro empresas açucareiras haviam sido presos pela KGB. E permanecem sob custódia do serviço secreto bielorrusso, que ainda conserva o acrônimo dos tempos soviéticos (o único que não foi renomeado) e, segundo os críticos, também algumas de suas práticas. São acusados de suborno, malversação de fundos e fraude com outras sete pessoas ―entre trabalhadores e funcionários de alto escalão― no que já se conhece como o caso do açúcar. O acontecimento abalou o país.

Lukashenko, que governa a Bielorrússia com mãos de ferro há 25 anos, reconhecido por seu característico e bem cuidado bigode e que costuma ser chamado de “o último ditador da Europa”, comentou que havia sido ele a ordenar as prisões e o avião a retornar. Nas inspeções se descobriu que os acusados tinham “dúzias de carros de luxo, apartamentos, mansões e uma grande quantidade de dinheiro vivo”, afirmou o presidente bielorrusso, que costuma ser mostrado pela televisão pública em visitas e inspeções em fazendas, fábricas e escolas, como quem controla pessoalmente a gestão do país. “Não foram agredidos, seus dedos não foram prensados nas portas. Foram questionados e se exigiu a verdade. E confessaram”, afirmou Lukashenko na terça-feira, em uma dessas visitas televisionadas, dessa vez a uma produtora de papel.

O caso, em que os responsáveis de toda a indústria do açúcar estão sob os holofotes, não tem precedentes na Bielorrússia, comenta a analista econômica Olga Loiko. O mais sovietizado dos antigos países da URSS quase não tem casos de corrupção doméstica e em pequena escala (propinas a policiais, funcionários e médicos), diz Loiko. Ainda que não sejam incomuns acontecimentos no âmbito empresarial. Público e privado, afirma a especialista bielorrussa.

Mas o caso da “máfia do açúcar” ―como é chamado pela imprensa estatal após as prisões tornarem-se públicas― chega, além disso, em um momento interessante às eleições presidenciais de 2020. “A coincidência entre a revelação do crime e o início da campanha é provavelmente acidental, mas benéfico às autoridades”, diz Loiko. A Bielorrússia (9,5 milhões de habitantes), com uma economia de semi-mercado ―e um PIB per capita em paridade de poder aquisitivo de 20.000 dólares (85.000 reais) anuais, de acordo com dados do Banco Mundial―, está envolvida em uma intensa negociação com a Rússia sobre o preço do petróleo, do qual é muito dependente, que pode colocar em risco sua estabilidade econômica.

Enquanto isso, o açúcar está em todas as casas, é um assunto próximo e compreensível. Também importante para a Bielorrússia, que nos anos noventa nacionalizou as empresas açucareiras e que há dois, pela queda dos preços mundiais do produto, fixou um mínimo à venda interna: 63 centavos de euro (3 reais). Uma regulamentação que permitiu modernizar e manter a indústria, mas que afeta o bolso dos bielorrussos (com um salário mínimo anual de 375 euros ―1.765 reais―). Agora, após o escândalo do caso do açúcar, tudo isso pode mudar.

Os diretores acusados se aproveitavam dessa regulamentação, segundo os dados divulgados pelo presidente Lukashenko e pela Promotoria Geral. Os quatro chefes das açucareiras bielorrussas e o diretor da empresa estatal exportadora criaram uma empresa fantasma na Rússia e a vendiam a preços baixos um açúcar que não chegava a ser exportado, era vendido à Bielorrússia ao preço regulamentado, de modo que os acusados embolsavam a diferença. Além disso, os empresários comercializavam o produto a intermediários russos a preços inferiores e recebiam comissão por cada tonelada.

“A cada ano, a quantidade de propinas é estimada em centenas de milhares de dólares”, afirmou o porta-voz da KGB, Konstantin Bychek, citado pelo portal independente bielorrusso Tut.by, que acompanhou intensamente o caso. Os chefes do açúcar bielorrusso também contavam com uma vantagem interna: alguém os avisava das inspeções e os protegia de revisões indiscretas. Vladimir Tijin, funcionário de alto escalão do Ministério do Interior, considerado um dos papas da luta anticorrupção no país ―e que possui várias denúncias de opositores por violação dos direitos humanos―, foi preso como parte do caso. A suspeita é que foi ele, aposentado em dezembro, que avisou Prúdnik e Kristanovich para que fugissem.

Os acusados podem pegar até 15 anos de cadeia. “Aqui estamos tentando construir e inovar para que as pessoas tenham um salário e enquanto isso esses bastardos estão roubando insolentemente em plena luz do dia”, frisou taxativamente o presidente Lukashenko. E alertou: “Que todos os diretores tomem nota” (El País, 8/2/20)