O petróleo e as distorções da pandemia – Editorial O Estado de S.Paulo
A crise do novo coronavírus vem gerando consequências absolutamente inéditas.
Como se quisesse trazer à realidade todos os que, em alguma medida, relativizam os fatos, a pandemia do novo coronavírus vem gerando consequências absolutamente inéditas, nos mais variados setores. Há alguns dias, foi a vez do petróleo. Pela primeira vez na história, preços de algumas classificações da principal matéria-prima mundial ficaram negativos. O dado é tão insólito que merece explicação.
A pandemia do novo coronavírus gerou uma forte e abrupta queda na demanda de petróleo. Isolamento social e proibição de viagens, com menos deslocamentos de carro e menos aviões voando, são alguns dos exemplos de como a crise atual afeta o consumo de petróleo. Estima-se uma redução de até um terço da demanda global do óleo em relação ao período anterior à pandemia.
Além disso, o setor do petróleo tem duas especificidades que agravaram a queda repentina da demanda. Diferentemente do que ocorre em outras áreas, reduzir a produção de petróleo é um processo lento e, em alguns casos, virtualmente irreversível. Por exemplo, a interrupção da produção em um poço antigo pode ocasionar a despressurização do campo, o que exigiria, para retomar a produção, injetar pressão artificialmente. Em muitos casos, isso envolve um investimento desproporcional ao retorno esperado.
O diretor executivo da Agência Internacional de Energia (IEA, na sigla em inglês), Fatih Birol, informou que as reduções na produção devem começar a surtir efeito apenas em maio e, mesmo assim, em escala insuficiente para reequilibrar imediatamente o mercado.
A complicar o quadro, a capacidade de estocagem de petróleo é limitada e, em muitos países, está muito próxima do seu limite. O banco Morgan Stanley estima que os estoques em Cushing, principal centro de estocagem nos EUA, podem chegar ao limite de capacidade até junho. Segundo a Reuters, cerca de 160 milhões de barris estão armazenados em navios-tanque, um número recorde. No auge da crise financeira iniciada em 2008, 100 milhões de barris estavam armazenados em navios. Fontes do setor avaliam que a capacidade dos navios petroleiros está próxima – seria questão de semanas – do seu esgotamento.
A inédita distorção ocorrida no dia 20 de abril, com preços negativos de petróleo West Texas Intermediate (WTI) para contratos futuros para maio, foi resultado desses três fatores: queda repentina da demanda de óleo, lenta e difícil redução da produção e dificuldades de armazenamento da quantidade excedente.
A distorção de preços é ainda mais significativa por ter ocorrido dias depois de um acordo da Organização dos Países Exportadores de Petróleo e Aliados (Opep+) a respeito da redução da produção de petróleo. Resultado de longas negociações, o chamado Acordo de Páscoa foi considerado histórico pelo secretário-geral da Opep, Mohammed Barkindo. EUA, Rússia e Arábia Saudita chegaram a um consenso sobre a necessidade de conter a queda dos preços do óleo no mercado mundial, com um corte equivalente a 10% da oferta global.
O Acordo de Páscoa foi tratado neste espaço no dia 21 de abril (Trégua no mercado de petróleo). Ressalvando que não representava o fim das tensões geopolíticas que crispam as relações entre alguns países-membros da Opep+, dissemos que a trégua pontual poderia ajudar a diminuir a alta volatilidade do setor observada nos últimos dois meses. É de reconhecer que, no dia em que foi publicada a nota, essa previsão sobre a capacidade de o acordo gerar maior estabilidade no mercado havia sido superada por fatos mais recentes.
O que se tem visto é uma forte oscilação do preço do petróleo. No dia 22 de abril à tarde, por exemplo, os preços da commodity estavam em ascensão, ainda que em valores historicamente muito baixos.
A crise da covid-19 afeta, em proporções inéditas, a economia, com efeitos sobre a oferta e a procura, a produção e o consumo. Longe de ser um convite ao relaxamento das medidas de enfrentamento ao novo coronavírus, tal cenário reforça a necessidade de prudência e bom senso, também para retificar quando for necessário (O Estado de S.Paulo, 4/5/20)