15/12/2021

“O setor moderno do agro precisa ocupar espaço político”, alerta Capobianco

“O setor moderno do agro precisa ocupar espaço político”, alerta Capobianco

Joao Paulo Capobiano- Foto Marcos Oliveira Agencia Senado

Por Júlia Schiaffarino

Avesso a generalizações, o biólogo João Paulo Capobianco observa o crescimento de uma parcela do agronegócio que define como “progressista”. Entretanto, alerta para a urgência deste grupo assumir um papel político ativo nas pautas ambientais discutidas no Congresso como forma de barrar retrocessos. Para ele é uma contradição não alinhar defesas a ações.

“Enquanto o setor progressista do agronegócio defende a conservação, a agricultura de baixo carbono, os princípios da convenção do clima e da biodiversidade, lá no Congresso a sua bancada está pressionando e conseguindo aprovar a mudança na lei de licenciamento, no código florestal, no sistema de regularização fundiária para permitir reconhecer terra grilada. Essa contradição é absurda e o setor tem que rever isso. Ele não pode de um lado defender uma ação positiva e do outro permitir que seus representantes promovam uma destruição na legislação ambiental”, disse em entrevista exclusiva ao Congresso em Foco.

Capobianco foi secretário executivo do Ministério do Meio Ambiente na gestão Marina Silva, quando participou da implementação de políticas ambientais que deram visibilidade internacional ao Brasil. Entre as ações, destaca-se o Plano de Proteção e Controle do Desmatamento da Amazônia (PPCDAm), lançado em 2004. De caráter interministerial, a iniciativa fez com que o país reduzisse em mais de 80% os índices de desmatamentos de 2004 a 2014, um recorde na história brasileira.

A experiência bem-exitosa é revista por Capobianco no livro “Amazônia, Uma Década de Esperança” (Editora Estação Liberdade). A obra será lançada em Brasília, nesta quarta-feira (15), às 19h, no restaurante The Plant, na Asa Sul.

Ao Congresso em Foco, o biólogo falou sobre como foi olhar para as políticas ambientais adotadas pelos governos anteriores a partir do cenário atual, no qual o país amarga recordes inversos aos conquistados com o PPCDAm. De maneira crítica, observa: “a política do atual governo é degradar, é ocupar de forma predatória a Amazônia. E para implementar essa política de ocupação predatória a qualquer preço, leva as ações de desmonte da legislação e de fragilização dos órgãos públicos”.

Como foi revisar o seu trabalho no Ministério do Meio Ambiente e a criação e condução do Plano de Proteção e Controle do Desmatamento na Amazônia?

Assim que eu saí do Ministério, em 2008, fui convidado para ser pesquisador visitante na Universidade de Colúmbia, em Nova Iorque e lá surgiu a ideia de fazer uma avaliação. Comecei a juntar materiais e quando voltei para o Brasil procurei a Universidade de São Paulo. Meu interesse era fazer essa avaliação de uma forma acadêmica. Procurei o professor José Goldemberg, pesquisador de altíssimo nível e cientista muito conhecido, e ele achou boa a ideia e me orientou. Então, eu fiz esse trabalho como doutorado na USP e defendi a tese em 2017. Ela ficou disponível nos sistemas on-line da universidade, mas com essa loucura que virou o governo Bolsonaro, esse desmatamento descontrolado, surgiu a ideia de tornar essa tese mais acessível no sentido de mostrar o que é possível fazer, como foi feito e o que precisa refazer.

Como está a situação do PPCDAm hoje? 

O programa foi totalmente desativado. Ele foi concebido em 2003 e a grande estratégia foi colocá-lo sob coordenação da Casa Civil, uma vez que o desmatamento não é um problema ambiental. Ele também é um problema ambiental, mas ele é um problema econômico e social. Nós articulamos isso, a Marina [Silva] obteve o apoio do presidente Lula na época e o plano foi então coordenado politicamente pela Casa Civil e operacionalmente e tecnicamente pelo Ministério do Meio Ambiente. Funcionou assim até 2013 quando, por um erro de avaliação política na minha visão, o plano foi para o Ministério do Meio Ambiente. Aí começa, de certa forma, a enfraquecer sua capacidade de ação, o que explica a retomada do desmatamento já a partir de 2015. Mas mesmo estando no MMA havia o programa e uma diretoria para coordenar o plano com uma equipe focada nisso, avaliando resultados, analisando tendências. Em 2019, quando o novo presidente assumiu e o ministro do Meio Ambiente na época, o primeiro ato que eles fizeram foi extinguir a secretaria de mudanças climáticas, onde estava a diretoria de controle do desmatamento. Então o PPCDAm simplesmente foi extinto. Não é que o plano foi encerrado. Extinguiu-se a coordenação, a diretoria responsável pelo plano e o decreto que criou o plano não foi revogado, mas deixou de existir na prática.

Se esse plano voltasse a ser posto em prática hoje, que pontos seriam cruciais para reverter a curva de desmatamento, queimada e degradação do meio ambiente? 

Hoje as condições para controlar os desmatamentos na Amazônia são mais favoráveis que em 2003 e 2004. Temos uma mobilização internacional importantíssima em relação às florestas e uma legislação mais interessante. Quando assumimos, por exemplo, não havia lei de gestão de florestas públicas, o CAR [Cadastro Ambiental Rural], um INPE [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais] tão efetivo na avaliação detalhada do desmatamento, o DETER, enfim, não tínhamos várias ferramentas que temos hoje. Sem contar outras coisas como a regulação do mercado de carbono, que avançou muito grande na COP 26. Porém, a questão central é que tudo depende de uma posição clara do poder público, do governo federal, de que haverá controle, de que não haverá impunidade. No meu livro eu mostro isso. Baseado nos dados e em entrevistas fica evidente que o fator fundamental para a redução de 82% no desmatamento foi a percepção de risco. Os agentes que promovem a degradação passaram a ser controlados e criou-se uma percepção de que havia risco de se descumprir a lei. Não adianta você ter ferramentas, capacidade de monitoramento, saber cada vez com mais detalhes onde está o desmatamento e quem promove, saber as propriedades rurais que estão ilegais e não agir. Esse é o nosso gargalo. Temos um governo que não tem interesse, não tem compromisso em implementar a legislação. Você tem uma ação para fragilizar a legislação, e uma ação para fragilizar os órgãos públicos, responsáveis pelo controle.

Onde entra a importância das unidades de conservação?

Principalmente nas regiões de maior pressão, onde você tem uma frente predatória, nós criamos, o que se denominou na época de Muralha Verde. Que era justamente a criação de unidades de conservação naquele local onde se pretendia desmatar. O governo atual paralisou completamente os processos de criação de unidades de conservação e de reconhecimento de terras indígenas. Ao contrário, sinalizou com a possibilidade de revisar as unidades de conservação e de rever terras indígenas. Seria uma loucura inconstitucional. Quando o governo não sinaliza que fará cumprir a lei, ao contrário, quando ele sinaliza que vai flexibilizar as ações, há uma corrida pelas invasões, pela grilagem de terra, que é o maior problema da Amazônia, e, em consequência, o desmatamento.

O senhor acredita que esse “desmonte” é uma política de governo?

Claro! Diríamos que a política do atual governo é degradar, é ocupar de forma predatória a Amazônia. E para implementar essa política de ocupação predatória a qualquer preço, leva as ações de desmonte da legislação e de fragilização dos órgãos públicos.

Legenda: Desmatamento  dentro da Terra Indígena de Karipuna. Foto: Divulgação Greenpeace

 O governo coloca de uma forma muito dicotômica a preservação ambiental e o crescimento econômico. Mas sabemos que tem um lobby muito forte por trás desse discurso. A bancada do agro é forte no Congresso. De que maneira combater isso?

Primeiro, divulgando que é um mito absoluto essa história de que se você controlar o desmatamento vai ter impacto econômico negativo. O meu livro tem um capítulo específico para isso. Os números que eu coletei durante a tese mostram que o desmatamento seguiu caindo ao mesmo tempo em que a produção de soja e de carne, que são as duas commodities mais importantes da Amazônia, cresceu. Então, não tem nada a ver o processo predatório com a produção econômica. Se uma política de governo que nós iniciamos ali, inclusive com uma ação muito forte da Empraba, promovesse, divulgasse, fizesse extensão rural de técnicas para áreas degradadas voltarem a produzir, só com a incorporação dessas áreas na produção, por meio, por exemplo, da tecnologia da integração lavoura pecuária floresta, desenvolvida pela Embrapa, que melhora o solo e aumenta a produção, nós teríamos um aumento brutal da produção da Amazônia. O que falta é a ação de levar essa tecnologia ao produtor. Vincular, por exemplo, o crédito rural à adoção dessas tecnologias.

Mas aí você falou da questão da bancada ruralista do agronegócio. Nós nos acostumamos a falar agronegócio como uma coisa única, monolítica: “o agronegócio promove a degradação”, “o agronegócio está destruindo a Amazônia”. Isso não é verdade.  No agronegócio brasileiro, você tem uma parte dele cada vez maior que está se antecipando no sentido de evoluir para uma agricultura de baixo carbono, que preserva e que incorpora o meio ambiente na sua perspectiva de forma real e objetiva. Temos hoje um movimento forte no setor empresarial no sentido de reverter esse quadro de degradação. Assim como ainda temos uma parcela muito grande de produtores rurais que insistem em produzir da forma antiga, convencional e predatória, onde o que importa é expandir a área e não aumentar a produtividade. Então são duas situações que precisam ser diferenciadas e quando a gente generaliza, coloca todo mundo no mesmo lado. Há um um setor muito progressista nesse campo. Agora, o que realmente choca, e aí sim choca todos nós, é porque esse setor progressista que está fazendo uma diferença, que está cada vez mais envolvido com a agenda da sustentabilidade, por que que esse setor não consegue mudar a representação no Congresso Nacional? Quer dizer, é uma baita contradição. Enquanto o setor progressista do agronegócio defende a conservação, a agricultura de baixo carbono, os princípios da convenção do clima e da biodiversidade, lá no Congresso a sua bancada está pressionando e conseguindo aprovar a mudança na lei de licenciamento, no código florestal, no sistema de regularização fundiária, para permitir reconhecer terra grilada. Essa contradição é absurda e o setor tem que rever. Porque ele não pode de um lado defender uma ação positiva e do outro permitir que seus representantes promovam uma destruição na legislação ambiental como está ocorrendo agora no Brasil.

Acha que falta uma maior disposição política dessa parcela mais progressista do agronegócio?

Com certeza. O setor moderno do agronegócio precisa ocupar espaço político, precisa fazer diferente. Nós já temos alguns líderes fazendo isso, temos lideranças se expondo, indo a público colocar a necessidade da mudança. Mas, o problema, é que isso não tem escala. Passa eleição, pós-eleição e as representações do setor, são cerca de 250 parlamentares da bancada ruralista, continuam muito retrógradas, sem comprometidos com o futuro e nem com o presente. Eles são comprometidos com passado, com perpetuar um modelo absolutamente predatório e irresponsável que está nos condenando ao agravamento das mudanças climáticas. De fato, o desafio desse setor é assumir uma liderança efetiva para que o agronegócio brasileiro mude de patamar. Se o Brasil não controlar o desmatamento, devido ao fato de o tema florestas ter subido no topo da agenda internacional de uma forma muito impressionante, não só os países desenvolvidos, mas também  China, que são grandes importadores, vão passar a criar barreira tarifárias. A União Europeia está prestes a aprovar uma lei que vai proibir a entrada no território europeu de produtos que tenham o desmatamento na sua cadeia de custódia, na sua produção. Os Estados Unidos, que é um importantíssimo parceiro comercial brasileiro, já está com uma lei em discussão também, de proposta concreta. O Reino Unido também, que saiu da União Europeia, mas também está com uma proposta. E a China também na COP26, quando aderiu ao documento sobre florestas, que foi assinado lá um documento não vinculativo, mas importante politicamente, anunciou que está estudando formas de impedir a entrada de produtos que tenham o desmatamento na cadeia de produção. A porteira está se fechando. O setor do agronegócio vai ter que agir muito rapidamente para, ao mesmo tempo, proteger as nossas florestas e proteger as exportações

O próprio bloqueio do Fundo Amazônia que o governo tentou desbloquear e até agora não conseguiu é um exemplo…

Sim. Essa história do Fundo Amazônia é uma coisa incrível, porque foi concebido e negociado no período que nós estávamos lá no governo. A gente construiu uma relação com a comunidade internacional e propusemos um mecanismo que depois virou o fundo, que chamava Mecanismo de Incentivos Positivos para a Redução do Desmatamento em Países Tropicais. Não era bem um pagamento, mas era uma doação financeira significativa para países que demonstrassem ter reduzido o desmatamento a partir de uma média histórica. E o Brasil, ao reduzir brutalmente o seu desmatamento foi logo o primeiro a ser identificado como merecedor do primeiro investimento, que foi um investimento impressionante. Um bilhão de dólares a fundo perdido. O que que isso significa? Não tem que pagar. É uma doação, diferente dos empréstimos. Então você vê: um bilhão de dólares doados pela Noroega, fora a doação da Alemanha que veio em seguida. E aí você vê que coisa maluca. De repenteo atual governo falou o seguinte: “olha aquele acordo que foi feito pra fazer uma gestão democrática dos recursos, para garantir que eles se convertam em ações concretas para continuar a reduzir o desmatamento, eu não concordo, eu quero definir onde serão gastos. Evidentemente que os países doadores não concordaram, pois havia um plano, um protocolo combinado a ser seguido. E aí nós paralisamos o fundo Amazônia, paralisamos o fundo clima, outro fundo importantíssimo. E o Brasil está aí nessa situação que a gente está vendo.

O senhor citou projetos que tem passado no Congresso que trazem retrocessos para a pauta ambiental. A gente tem a discussão atualmente do projeto de regularização fundiária, apelidado por ambientalistas de PL da Grilagem. Quais as consequências da aprovação desse projeto?

Esse texto já trouxe prejuízos. Ele é resultado de uma medida provisória, que não foi aprovada, para flexibilizar a possibilidade de titulação fundiária da Amazônia. Evidentemente não é tão dramático como a MP, é bem mais tênue, bem menos amplo do ponto de vista do “liberou geral”, mas existe a questão da percepção do risco. O texto está ampliando as possibilidades e flexibilizando a legislação e isso é capturado como uma oportunidade para a grilagem. Por isso que explodiu a grilagem de terra na Amazônia. O governo vem sinalizando essas flexibilizações. Uma legislação que é mudada várias vezes e eu vou rompendo com o limite imposto na legislação anterior se torna um problema. A legislação hoje existente possibilita a titulação de terreno pequeno. De forma inclusive remota, sem precisar ir à campo. Mudar a lei é só para favorecer grileiros e em detrimento, inclusive, do pequeno produtor rural. É um equívoco, repito, sempre fico na dúvida se é uma esperteza ou se é uma ingenuidade de alguns parlamentares aparentemente bem intencionados.

Visto sob os olhos dos desafios impostos ao Brasil e à preservação ambiental hoje, o que mudaria no PPCDAm?

Esse plano foi construído como um tripé. De um lado as chamadas medidas de controle e o combate à ilegalidade e o outro eixo é era o ordenamento territorial com a criação das unidades de conservação, titulação dos proprietários que têm direito, cancelamento de títulos Ilegais, combate à grilagem. O terceiro eixo era das práticas sustentáveis fomento à mudança da economia para um desenvolvimento sustentável, incorporação de novas tecnologias estímulo ao uso sustentável da floresta, os recursos genéticos. Esse terceiro eixo deixou a desejar.

Então eu acho que o foco agora seria voltar fortemente nas políticas de comando e controle, seguido de fazer uma ação de estímulo e apoio na disseminação de tecnologias e aporte financeiro para uma Economia da Floresta. Se nós quisermos a Amazônia preservada no longo prazo, temos que fazer dela um ambiente de geração de riqueza e renda, de melhoria na qualidade de vida das populações que vivem na Amazônia. A Economia da Floresta sobe no topo da agenda e isso faltou naquele período e precisaria ser fortemente incentivado hoje (Congresso em Foco, 12/12/21)