O vexaminoso leilão de arroz – Editorial O Estado de S.Paulo
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Verba reservada para comprar o produto seria mais bem utilizada se Lula estivesse realmente preocupado com a reconstrução do RS, e não só com sua própria popularidade
Pau que nasce torto morre torto, e assim foi com o malfadado leilão do governo para a compra de arroz importado. Para dar conta de um problema inexistente, nada melhor que um pregão improvisado, do qual participaram poucas empresas, todas com históricos mais que suspeitos.
Entre as vencedoras do leilão da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), havia somente uma empresa atuante do ramo. Além dela, uma fabricante de sorvetes, uma mercearia de bairro especializada em queijos e uma locadora de veículos receberiam nada menos que R$ 1,31 bilhão para importar 263,37 mil toneladas de arroz.
Com a crise armada, o circo foi montado no Palácio do Planalto. Após uma reunião com Lula da Silva, o presidente da Conab, Edegar Pretto, e os ministros da Agricultura, Carlos Fávaro, e do Desenvolvimento Agrário, Paulo Teixeira, anunciaram o cancelamento do certame e a demissão de Neri Geller, secretário de Política Agrícola.
Para justificar o fiasco, nada melhor que encontrar um bode expiatório. Sobrou para Neri Geller, que, para dizer o mínimo, não foi nada cauteloso no episódio que envolveu dois de seus ex-assessores parlamentares, um deles sócio de seu filho em outras empresas.
Geller não saiu calado. Negou ter havido má-fé de sua parte e confirmou o que todos já imaginavam antes mesmo da realização do certame. “As posições técnicas não foram seguidas. Elas foram açodadas para fazer com que o arroz chegasse nas periferias dos grandes centros”, afirmou, em entrevista à BandNews. “Não sou culpado por isso. Não posso ser penalizado por um erro político cometido na condução desse leilão.”
Em que pese a tentativa de se defender, Geller tem razão. O leilão foi, sim, uma lambança – não apenas política, mas também econômica. O certame foi pautado por uma premissa falsa: a de que faltaria arroz no mercado interno em razão das cheias no Rio Grande do Sul, risco descartado pelos sindicatos locais, uma vez que 84% da safra já havia sido colhida e armazenada antes das chuvas.
A Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) chegou a apelar ao Supremo Tribunal Federal (STF) para impedir a disputa, algo que ao menos teria livrado o governo do vexame. O pedido, no entanto, não foi aceito pela Corte. O Executivo não desistiu e prometeu realizar um novo leilão em breve.
Tanta perseverança nos faz pensar que o governo só pode estar com dinheiro sobrando no caixa. Do contrário, não cogitaria torrar mais de R$ 7 bilhões para inundar o País com uma oferta desnecessária de arroz, derrubar o preço do cereal, ampliar as perdas dos produtores gaúchos, desestimular a próxima safra e abalar ainda mais a economia do Estado.
Como não é o caso, a razão por trás de tanta teimosia só pode mesmo ser política. Há muitas outras maneiras de fazer um bom uso desses recursos, mas o governo Lula da Silva parece mais interessado em fazer da crise uma oportunidade para resgatar sua popularidade e minar o governador. A escolha do secretário de Comunicação Social, Paulo Pimenta, para o recém-criado cargo de ministro extraordinário de Reconstrução do Rio Grande do Sul evidenciou essa estratégia.
Por semanas, o governo ignorou o pedido de Eduardo Leite para retomar o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda (BEm), adotado na pandemia de covid-19. Mas no dia seguinte à peregrinação do governador a Brasília, Lula anunciou outro plano, sem a presença de Leite.
Mais recentemente, o presidente criticou a decisão do governador de construir 500 casas provisórias aos desabrigados. “É melhor dizer a verdade para o povo, é melhor dizer que destruir é muito rápido, construir é muito demorado”, afirmou Lula da Silva, sem pensar no destino dos milhares de pessoas que ainda estão em escolas e ginásios.
Se o presidente foi mesmo mal orientado ao decidir realizar o leilão, como sugeriu Neri Geller, Lula tem em suas mãos a chance de cancelar a iniciativa e destinar a verba ao financiamento de moradias definitivas aos gaúchos que perderam tudo que tinham. Eis um ato de grandeza para ajudar o Estado no pior momento de sua história (Estadão, 15/6/24)