Onde você estava na crise?- Por Nizan Guanaes
Eu nunca esqueci de quem investiu em mim quando eu não era nada.
O digital é um dos grandes vencedores da pandemia. Não porque ele tenha se reinventado, dado um grande salto, redescoberto a pólvora. O digital já estava aqui, pronto para este momento. E entregou muito mais do que esperávamos.
O trabalho, a educação, a arte e até o amor ficaram digitais. Tenho jantado direto com meu filho, e ele mora em Nova York. Combinamos o jantar, definimos o menu e compartilhamos o prato e a vida no horário marcado, cada um na sua tela. Podíamos fazer isso há anos, a tecnologia já existia. O que mudou foram as circunstâncias. Então não é a tecnologia, é o que fazemos com ela. O vetor não é o digital, é a gente.
Já foi dito que o mal não traz somente o mal e o bem não traz somente o bem. As crises são muito custosas para serem desperdiçadas. Muitas pessoas e empresas estão mudando por absoluta necessidade. E isso é bom para elas.
A pandemia é terrível, mas pode fortalecer. Neste momento, todas as estruturas doentes são grupos de risco para qualquer organização. É preciso cortar o que já não funcionava, mas era tolerado por razões que a própria razão desconhece. É hora de tomar medidas duras e restabelecer o espírito do fundador por trás de cada negócio. É hora de parar e fazer a seguinte análise: as pessoas ainda estão querendo o que tenho para oferecer? Se não, o que posso fazer diferente?
Boa parte das empresas vai paulatinamente se afastando do espírito fundador e se torna especialista em reunião e PowerPoint. A Apple se afastou tanto do espírito de Steve Jobs que chegou a afastar o próprio Steve Jobs. A companhia quase morreu. Jobs voltou, e o resto é história.
Já trabalhei com todo tipo de cliente, e sei quando a empresa começa a se meter em confusão. É quando ela olha mais para si do que para fora, quando ela estabelece processos decisórios gongóricos, de tomar uma decisão sobre tomar uma decisão sobre tomar uma decisão... As crises exigem rapidez, sentir rapidamente para que lado vai o cliente e mudar.
A gravidade e a solenidade dessa crise trouxeram também uma série de componentes de volta à sala, como a sabedoria, o bom senso e a morte.
Quando o ser humano começava a se imaginar vivendo 120 anos, a morte voltou gritando presente. Brutal assim. Podemos morrer fortuitamente ao levar a mão ao rosto, entrar num ambiente sem máscara, pegar um objeto sem o devido cuidado.
Esse elemento mortal vai levar as pessoas a tomar decisões com mais rigor e propriedade. Em vez de comprar uma bolsa ou um carro novo, por exemplo, podem preferir uma viagem inspiradora, um curso transformador.
Este é o momento de olhar as coisas com outro olhar. Se puder, contrate (ou leia) um antropólogo, um sociólogo, alguém capaz de entender transformações na sociedade ampla, não apenas no seu mercado.
A crise será vencida por aqueles que entenderem este momento e o seu papel neste momento. Seu papel na casa, na família, na empresa, na sociedade, no planeta.
Passado isso tudo, o público vai perguntar: O que vocês fizeram por mim? Onde estavam na crise? Muita gente e muita empresa responderão de peito aberto e cabeça erguida. Aos que ainda não podem fazer isso, há tempo para realizar coisas relevantes. Se não tiver recursos materiais, dê tempo e esforço, muito valiosos.
Você se lembra a vida inteira da pessoa que lhe ajudou num momento crítico. E não esquece quem não fez nada na hora da precisão. Eu nunca me esqueci de quem investiu em mim quando eu não era nada.
Aqueles que se posicionaram de maneira contundente a favor de quem precisa terão dianteira enorme nos corações e nas mentes das pessoas quando esta crise passar. E ela vai passar (Nizan Guanaes, empreendedor, criador da N Ideias; Folha de S.Paulo, 14/7/20)